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Assassinos da Lua das Flores

Em quase três horas e meia que passam voando, Martin Scorsese conta a história de extermínio de milionária tribo indígena dos EUA

Texto por Abonico Smith

Fotos: Apple TV+/Paramount/Divulgação

Martin Scorsese declarou, não faz muito tempo, sua aversão por filmes como os da Marvel. Disse que aquilo não era cinema, justamente por estarem fincados no pilar da necessidade de CGIs aos borbotões. Contudo, parece que anda querendo competir com os próprios blockbusters de super-heróis. Pelo menos no que se refere ao tempo de exibição de seus últimos longas-metragens. O Irlandês, de 2019, alcançava 3 horas e 29 minutos de duração. Agora, com apenas 180 segundos a menos, ele lança Assassinos da Lua das Flores (Killers Of The Flower Moon, EUA, 2023 – Apple TV+/Paramount). Em comum aos dois, o fato do diretor não se preocupar muito com a extensão da obra. Afinal, foram feitos diretamente para o streaming. Os espectadores estão em casa, no conforto do lar, podem pausar como e quando quiserem, inclusive podendo assisti-los divididos em alguns dias. Continua sendo cinema segundo a sua concepção, mas agora voltado a um novo modo de consumo, sem a necessidade de estar em uma experiência coletiva vivenciada em salas públicas de projeção.

Polêmicas conceituais à parte, o fato é que, antes de chegar à sua plataforma de streamingAssassinos da Lua das Flores – tal qual a Netflix já fizera com O Irlandês – desembarca primeiro nos cinemas. Coisas das regras para um filme ganhar indicações ao Oscar do início da próxima temporada. Isso torna um desafio um tanto quanto maior para quem se dispõe a sair de casa para assistir a esta “maratona de uma trama só” em alguma sala nas rua ou nem algum shopping center. Prender a atenção e sentar-se na poltrona por 210 minutos sem sequer ir ao banheiro é uma tarefa árdua. Assim como no filme anterior, o novo título de Scorsese também ganha lançamento prévio por algumas cidades brasileiras. E por ter a assinatura do cineasta – que agora também assina o roteiro, ao lado do também veterano Eric Roth (Forrest GumpO Curioso Caso de Benjamin Button, as mais recentes versões de Nasce Uma Estrela e Duna) – vale a pena a aventura.

A história é adaptada do livro de David Grann no qual ele conta a trágica história dos índios Osage por volta de um século atrás, durante os anos 1920. Por sinal, é a mesma história que deu origem à criação do FBI e a subsequente dinastia de quase meio século com J. Edgar Hoover no comando do principal órgão de investigação e segurança nacional dos Estados Unidos. Talvez por ser um livro tão rico em detalhes e com intrincadas referências, que a opção foi deixar uma trama extensa na tela para que fossem exploradas camadas de narrativas, visuais e interpretações do jeito intenso e fluido com que Scorsese sempre conduziu seus filmes.

A tribo nativa estadunidense fora deslocada de sua terra natal em 1870 e colocada em um canto de Oklahoma com o solo seco e rochoso. Entretanto, algumas décadas depois, descobriu-se um farto subsolo petrolífero por lá, tornando os Osage índios milionários, inclusive podendo se dar ao luxo de – contrariando tudo o que acontecera na corrida de colonização do Velho Oeste – poderem se dar ao luxo de contar com empregados brancos no dia a dia. O nome Flower Moon, inclusive, vinha a região dos prados onde ficavam os Osage, que ao fim de cada inverno, tornavam-se um tapete recheado de belas flores coloridas.

Com a benção da tribo e sendo bastante respeitoso ao livro de Grann (que também recebe crédito como corroteirista), Martin conta a história de como uma série de misteriosos assassinatos se abate sobre os Osage. Homens e mulheres são mortos por tiros, explosões, envenenamento. No meio disso tudo, a líder nativa Mollie (Lily Gladstone, em brilhante atuação que pode até lhe dar alguns prêmios e indicações no começo do próximo ano) segue sua luta particular que mistura orgulho indígena a doenças que abatem a sua mãe e a ela própria.

O vilão fica claro desde o início. Ele é o todo-poderoso fazendeiro da região Bill Hale (Robert de Niro), cheio de amigos influentes na política, na polícia e em todo lugar de poder. Por trás da máscara de caridoso benfeitor da sociedade, ele arquiteta os mais malvados e impiedosos planos de extermínio para ficar, legalmente e por meio de herança familiar, com as terras onde abunda o ouro de cor preta. Para isso, Hale possui vários paus mandados. Seu principal ajudante de ordens é o sobrinho Ernest Buckhart (Leonardo DiCaprio), a quem traz para perto para fisgar o coração (e com isso os bens e as propriedades) de Mollie.

Esta é a primeira vez em que De Niro e DiCaprio trabalham juntos sob a batuta de Scorsese. Os dois atores, frequentemente escalados para o elenco das obras do cineasta, revelam ter boa química. Quando entra em cena Gladstone, tudo fica ainda mais iluminado. O resto do elenco também traz um pouco de seu brilho em pequenas participações. Do último ator oscarizado Brendan Fraser (como o advogado da família “mafiosa”) ao sempre impactante Jesse Plemons (como o policial enviado à região pelo bureau federal de investigações). E quem gosta de música também tem quase rês horas de puro deleite. A trilha sonora assinada pelo recentemente falecido Robbie Robertson (leia aqui mais sobre o histórico músico da não menos histórica banda chamada Band) é espetacular ao pontuar as cenas do faroeste dos anos 1920 com as raízes do blues e do country estadunidense. E aos poucos algumas caras famosas como Jason Isbell, Sturgill Simpson, Pete Yorn e Jack White vão aparecendo na tela em pequenos papeis e pontas.

Aos 80 anos de idade e constantemente demonstrando um pleno fulgor criativo, Martin Scorsese faz deste Assassinos da Lua das Flores mais uma grande obra em sua extensa e cultuada filmografia. E ainda faz o tempo voar na poltrona dos cinemas sem a necessidade de apelar para a abundância de CGIs. Isso não só é amor pelo cinema, como também o saber fazer cinema no mais puro sentido da sétima arte, dominando a tecnologia e não sendo dominado por ela.

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Duna

Nova adaptação cinematográfica de clássico literário da ficção científica justifica todas as expectativas com elenco estelar e grandiosidade visual

Textos por Leonardo Andreiko e Marden Machado (Cinemarden)

Fotos: Warner/Divugação

A versão de Duna (Dune, EUA, 2021 – Warner) de Denis Villeneuve é um dos filmes mais aguardados deste ano, senão a cabeça dessa lista. O diretor de Blade Runner 2049 e A Chegada prometeu uma readaptação do clássico literário de ficção científica, que outrora esteve nas mãos de David Lynch (Duna, de 1984, com Sting fazendo parte do elenco). Como se não bastasse, o time que atua nesta versão é repleto de estrelas, como Timothée Chalamet, Zendaya, Javier Bardem e Stellan Skarsgard. 

A veia grandiosa da produção permeia todo o longa. Duna conta a história de Paul Atreides (Chalamet), herdeiro da Casa Atreides e do poder da Voz, que lhe assombra com visões premonitórias. A primeira parte de uma pretensa saga cinematográfica, com o roteiro assinado por Villeneuve, Eric Roth e Jon Spaihts, é a calmaria antes da tempestade. A extensa duração promete aos espectadores mal acostumados uma pá de cenas de ação e reviravoltas na trama, mas oferece um retrato comedido das Casas Nobres Atreides e Harkonnen, sua opressão do planeta Arrakis e, principalmente, de seu protagonista.

Dessa forma, é quase ambígua a abordagem de Villeneuve ao mundo complexo de Duna. Ao mesmo tempo que poucos eventos narrativos de expressão estratosférica ocorram, há em toda a mise en scène uma grandiosidade ensurdecedora. A pretensão épica da direção é óbvia: são diversos os “grandes momentos”, quando uma revelação leva a uma montagem dramática embebida nos sintetizadores e coros da trilha sonora composta Hans Zimmer. A constante verve premonitória que atormenta Paul também rende sequências enervantes de rápidos entrecortes cujo contraste é inquietante: O fogo vivo e a areia dessaturada; o ambiente escuro e o céu superexposto.

Embora as batalhas da trama não estejam distribuídas igualmente do início ao fim, Duna é uma panela de pressão, lentamente embalando o espectador para o fim daquela calmaria – em dado momento, o filme a abandona e se torna tempestade. E nos deixa esperando mais. Mas seria tolice ignorar a construção que nos leva à hora de ruptura. Villeneuve é muito perspicaz em significar todo o contexto expansionista e logicamente hipercapitalista abusando do tratamento épico que confere ao longa. A humanidade em Duna é, ao mesmo tempo, colossal e minúscula. O diretor insiste, ao longo da trama, em evidenciar essa escala que opõe criador e criatura – os pequenos seres humanos e suas enormes máquinas, cidades e construções. A arquitetura e a falta de cor são expressões da megalomania de uma humanidade desinteressada no planeta para além do lucro. Seu maquinário é onipresente e igualmente retrato desse futuro cuja ordem política é o retorno ao passado – em dado momento, Duque Leto Atreides (Oscar Isaac) se refere a Arrakis como seu feudo.

A outra instância em que a escala humana é abandonada em virtude da grandiosidade espacial é também um dos pontos altos de Duna: sua relação com o deserto. Ele não é uma mera locação, um mapa pelo qual se percorre para sair do ponto A e chegar no ponto B da trama, mas uma entidade. As referências a um deserto vivo, pulsante, são várias na cultura Fremen, a população originária oprimida pelas casas nobres, que fazem de Arrakis seu “garimpo ilegal”. Ao contrário da pretensão humana, contudo, ele é grandioso. O lar de vermes de centenas de metros de largura, capazes de engolir o imenso maquinário de extração dos Atreides como se fosse um aperitivo, é objeto de uma antecipação imensa. Para atravessá-lo e sobreviver a ele, é preciso conhecê-lo. 

Desse modo, as particularidades de Duna compõem um blockbuster que se destaca dos lançamentos deste último ano. Tanto como filme em si mesmo, interpretado sob a luz de um épico mais intimista e contemplativo, quanto na qualidade de início de uma saga, em que se percebem as intenções de prenunciar importantes âncoras narrativas de uma trama geral, o longa-metragem de Villeneuve é uma obra para os cinemas. 

A suspensão do tempo dentro da sala escura, munida de qualidade audiovisual espetacular, é ingrediente para a elevação da experiência fílmica que propõe o diretor. Se estiver esperando a melhor oportunidade para marcar seu retorno aos cinemas após a imunização pela vacina da covid-19, assista a este novo Duna em uma sala de cinema. (LA)

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Desde que o escritor americano Frank Herbert publicou em 1965 sua obra mais conhecida que o cinema tentava adaptá-la. Concretamente, esse processo teve início no final dos anos 1970, na esteira do estrondoso sucesso de Star Wars. No começo da década seguinte, o cineasta Ridley Scott, que vinha do badalado Alien, envolveu-se com o projeto e quase dirigiu o filme, abandonando-o para realizar Blade Runner. Em seu lugar foi chamado o quase estreante David Lynch, que na época tinha apenas alguns curtas e dois longas no currículo.

Lynch, também autor do roteiro, mergulhou fundo no universo de Herbert e concebeu um filme que até hoje divide opiniões entre os fãs da saga. Tudo se passa em um futuro distante. O clã Atreides está de mudança para o planeta deserto que dá título ao livro/filme. Mas o que poderia dar errado? Em se tratando de um clássico da ficção-científica rico em metáforas e alegorias, simplesmente tudo. Ainda mais quando você mistura castas sociais, política, religião e ecologia.

Duna, o filme de 1984, atualmente disponível no Brasil pela Netflix, dividiu e continua dividindo opiniões. Mas é, indiscutivelmente, uma grande espetáculo visual. (MM)