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Mercuriales

Leve um choque de realidade ao acompanhar o ordinário cotidiano de duas amigas em uma Paris sem muitas perspectivas sociais e afetivas

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Supo Mungam/Divulgação

Pense em Paris. O que vem à mente? A Torre Eiffel, o Louvre, construções em sintonia em tons de sépia? Mercuriales (França, 2014 – Supo Mungam) mostra uma realidade longe da idealização da Cidade-Luz. A nua e crua periferia de Paris é cenário para um filme desafiador do diretor Virgil Vernier.

O nome do longa – lançado no Brasil pela plataforma de streaming Supo Mungam Plus – é inspirado em um prédio comercial, onde as jovens Joane (Philippine Stindel) e Lisa (Ana Neborac) se conhecem durante um período de empregos temporários. As duas, sem muito em comum, além da falta de perspectiva de futuro e sensação de abandono afetivo e social, criam um improvável laço. Vagando por uma Paris de concreto bruto, a câmera parece seguir as novas amigas como em um documentário naturalista.

É fácil esquecer que se está assistindo a um conteúdo fictício. O ordinário do cotidiano discorre pelos minutos causando estranhamento. As duas jovens vivem alheias aos horrores modernos, mas ao mesmo tempo são consequências diretas deles. O filme intercala atuação com narrações em off, cenas de rituais pagãos, os diálogos e as imagens se desencontram em uma narrativa ousada.

A fotografia é um elemento importante de Mercuriales. Os tons azulados remetem à tristeza, ao abandono, à frieza. Juntamente das grandes construções prestes a serem demolidas pelas prefeitura, o azul ganha um tom nostálgico. Lisa e Joane se encontram e desencontram ao passo que suas vidas continuam as mesmas – a única coisa que muda é a paisagem.

Ao longo do filme, muito pela trilha sonora ora intensa, ora suave, cria-se a expectativa de que algo grandioso está por vir. Mas nada acontece. O que isso pode nos dizer a respeito de nossas vidas? A normalidade não é o suficiente? Se a ficção geralmente nos presenteia com reviravoltas e tramas difíceis de decifrar, Vernier desafia o público a aceitar a realidade.

Racismo, machismo e conflitos religiosos figuram na vida das protagonistas. Os assuntos sérios surgem sem rodeios, como quando a filha da colega de apartamento de Joane pergunta a um convidado muçulmano de onde os islâmicos vêm, causando costrangimento. O choque entre cristianismo e islamismo é tratado mais vezes ao longo do filme de maneira sutil, mostrando que essa é uma ferida aberta da França.

Mercuriales é desafiador. Vernier sabe como captar diversos universos conflitantes com uma câmera. Tem uma cena específica em que Lisa cai em um choro sentido, sem motivo aparente. É assim que opera nos sentimentos de quem o vê. Uma onda de sensações inexplicáveis, que inquietam, incomodam e fazem refletir. O cru acaba sendo um choque de realidade.

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Falsas Confidências

Longa-metragem feito para a TV francesa traz para os dias de hoje uma história de ambição e golpe do baú do século 18

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Supo Mungam/Divulgação

Falsas Confidências (Les Fausses Confidences, França, 2016 – Supo Mungam) é uma obra feita para a TV e tornado disponível há poucos dias no Brasil pelo serviço de streaming Supo Mungam Plus. O serviço on demand contém os filmes da distribuidora de mesmo nome, com enfoque em cinema de festivais e arthouse. Este longa não foge de tais categorias.

Baseada em uma peça do escritor francês Pierre de Marivaux, a trama revolve em torno do plano de Dorante (Louis Garrel) e Dubois (Yves Jacques) para que aquele case-se com Araminte (Isabelle Huppert) e, assim, arrebate suas riquezas. O original, escrito no século 18, inevitavelmente se funda nas instituições políticas de seu tempo. Luc Bondy, que dirige o filme junto a Marie-Louise Bischofberger, escolhe transferir a narrativa para os dias de hoje, mas o faz sem adaptar as instituições e a linguagem utilizada pelas personagens.

Assim, a mansão de Araminte é casa de todos seus criados, incluindo o raso Arlequim, um senhor idoso e com claras limitações cognitivas utilizado puramente como alívio cômico, mas sem qualquer eficiência. A rica viúva é prometida a um conde com quem nutre disputas de terras (Jean-Pierre Malo) e a comunicação é feita por cartas. Portanto, quando Dorante chega à mansão buscando o emprego de assistente pessoal da protagonista, inicia-se junto à trama um processo infindável de estranheza, com o claro contraste entre maneirismos, diálogos e ações das personagens e o mundo ao seu redor.

Bondy busca uma peculiaridade visual que, a princípio, prende a atenção do espectador. O diretor de fotografia, Luciano Tovoli (de Suspiria, a versão original de Dario Argento), compõe ricos planos que, apesar de estáticos, são munidos de camadas muito bem construídas e movimento dinâmico dos atores. A comum abordagem de emprestar a linguagem do teatro (com planos conjuntos que cobrem uma cena quase inteira, no máximo um plano-contraplano ou outro) é empregada por Bondy com a rasa eficiência que é capaz de carregar. Na incapacidade de transmitir as nuances do material de uma mídia a outra, o diretor se apoia na escolha estética de uma cafonice inerente a seu filme.

Por melhor composta que seja a mise-en-scène, a atenção do espectador se volta às decisões de figurino questionáveis, adereços de cenário sem nexo e, fechando o caixão, a decisão criativa (pois é impossível que isso seja um mero erro) de estourar completamente os brancos da maioria das cenas externas. 

Com diálogo e atos claramente despidos de seu tempo, opções estéticas distratoras e uma direção preguiçosa, As Falsas Confidências é um filme bagunçado, que carrega performances aquém de seu elenco e interrompe sua imersão do início ao fim. Talvez por ter, justamente, sido feito para a televisão, não para o cinema.

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Monster Hunter

Milla Jovovich e Paul WS Anderson voltam ao universo dos videogames com muitas lutas, perseguições e uma história sem pé nem cabeça

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Sony Pictures/Divulgação

Milla Jovovich já pode ser considerada uma veterana em filmes de adaptações de videogameMonster Hunter (Alemanha/EUA/Japão/China, 2020 – Sony Pictures) é o mais novo título a entrar no currículo da atriz. Do mesmo diretor de Resident Evil e Mortal Kombat, a nova produção pode impressionar nas cenas de ação, mas deixa a desejar no roteiro. O “outro mundo” em que a maior parte da história acontece tem visuais incríveis, embora pouco seja explicado sobre ele ao longo dos 100 minutos de acontecimentos. O foco aqui é claro: monstros, lutas, perseguições e mais lutas.

A premissa é simples: durante uma expedição no deserto a equipe de Nathalie Artemis (Milla Jovovich), militar de operações, atravessa um portal para outro mundo. Lá encontram monstros terríveis e jamais vistos antes. A tal equipe é logo aniquilada e Artemis se vê sozinha com um nativo do novo mundo, o Caçador (Tony Jaa). Após sequências intermináveis de lutas entre os dois, a dupla improvável se une. É uma relação tipo Crusoé e Sexta-Feira: pessoas de mundo e línguas diferentes que se unem para sobreviver. 

O diretor Paul WS Anderson sabe bem qual público seu filme irá agradar. Essa consciência, óbvio, resulta em muita ação. As lutas são bem coreografadas e as perseguições, intensas. A história se divide em dia e noite, com dois tipos de monstros à solta. As cenas dentro do covil de uma das criaturas é o melhor deste longa. E se tem ação frenética, tem pouca história. Quem procura por um enredo fechado e explicações sairá frustrado, principalmente com o final feito para ter uma continuação e não para concuir este filme. Mesmo assim, fãs do game deverão ficar satisfeitos ao final dos créditos, afinal a ação fantástica faz jus à sua origem.

Monster Hunter torna complicado sentir qualquer coisa pelos personagens. Eles são muito mal trabalhados. A equipe de Artemis, assim como é introduzida, some sem qualquer desenvolvimento. É difícil até sentir dó! E se a personagem de Jovovich aparece beijando um anel algumas vezes, acrescentaria muito explicar o significado disso. Ela é casada? Noiva? Tem filhos? A unidimensional mulher porreta que “bota pra quebrar” não preenche o longa.

A cena inicial mostra um barco navegando nas areias do deserto, antes de ser atacado por um dos monstros. Esses personagens retornam, de maneira abrupta, no último ato. Chega a ser repetitivo dizer, mas tal núcleo tem um desenvolvimento ainda mais precário. Alguns personagens têm apenas duas ou três falas monossilábicas. Uma pena para a atriz brasileira Nanda Costa, em seu primeiro papel em Hollywood, que caiu justamente nesse balaio. 

As tentativas de comédia também são falhas e repetitivas. A cena de Artemis mostrando o que é chocolate para o Caçador chega a ser desconfortável. Talvez uma mulher branca mostrando coisas “desenvolvidas” para um homem não branco não seja o alívio cômico mais inteligente. Por sinal, a maioria das piadas do filme se baseia na dificuldade da comunicação entre os personagens. Uma hora isso cansa.

Monster Hunter revela-se, no seu decorrer, grandioso, bruto e intenso. Aqui há algumas perseguições muito bem montadas, daquelas de deixar o público bem nervoso. De resto, entretanto, é só mais um filme de monstros. Sem muita história, sem pé nem cabeça.