Movies, Music

Summer of Soul (… ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada)

Marco histórico do movimento negro norte-americano, festival de 1969 foi um mastodôntico grito de identidade racial chega em streaming no Brasil

Texto por Fábio Soares

Foto: Searchlight/Hulu/Divulgação

Para grande parte dos brasileiros quando o ano de 1969 é mencionado, sinapses cerebrais remeterão a três fatos históricos: a chegada do homem à lua, o milésimo gol de Pelé e o Festival de Woodstock. Para o resto do planeta, porém, a figura do último citado vem demasiadamente acompanhada da ideia de paz, amor livre, maconha e a guitarra de Jimi Hendrix naquele que foi famigeradamente conhecido como o “Verão do Amor”. Amor este que cabia muito bem ali, em meio ao lamaçal da positividade, enfim, os iuéssey mergulhados numa boa, mergulhados numa nice, certo?

Não era bem por aí. O que praticamente não sabíamos é que, em modo paralelo e a 160 km de distância do universo woodstockiano, um microuniverso encrustado no Mount Morris Park, em Nova York, marcaria a gênese de um marco histórico para o movimento negro norte-americano. O Festival Cultural do Harlem não era apenas um simplório e efêmero evento musical, tampouco preocupava-se em transparecer aquela atmosfera de “paz e amor” similar a Woodstock. Foi um mastodôntico grito de identidade do povo preto no bairro que mais ratificava seu DNA. Tendo como mentor intelectual o aglutinador Tony Laurence, ocupou o Morris Park por seis finais de semana seguidos com um público estimado de 300 mil pessoas, tendo somente uma marca de café como patrocinadora e a segurança a cabo dos Panteras Negras. Em seu line up, um elenco inimaginável: Chambers Brothers, 5th Dimension, Staple Singers, David Ruffin (recém-saído dos Temptations), Gladys Night; pesos-pesados como B.B King, Stevie Wonder e Sly & The Family Stone; e mais um ANTOLÓGICO concerto de Nina Simone.

Mas por que diabos somente agora, mais de meio século depois, temos acesso a estes espetaculares registros deste festival que marcou uma geração ávida por liberdade e reconhecimento? Porque ninguém, absolutamente NINGUÉM, interessou-se em comercializar os registros daquele Woodstock Negro, fazendo com que rolos de filme praticamente apodrecessem num porão por cinco décadas. Coube ao herói sem capa Ahmir Thompson, mais conhecido pela alcunha de Questlove, a missão de resgatar o material bruto, compilar e editar mais de 40 horas de apresentações e transformá-las em um histórico e dilacerante documento histórico que perdurará por gerações.

Em Summer of Soul (… ou Quando a Revolução Não Pôde Ser Televisionada) (Summer of Soul (… Or, When The Revolution Could Not Be Televised), EUA, 2021 – Searchlight/Hulu), poucas vezes o movimento negro americano foi tão bem (e urgentemente) retratado em seu estado bruto. A cápsula negra do souljazz e r&b teve emocionantes intervenções como a do reverendo Jesse Jackson relatando as últimas 24 horas de vida de Martin Luther King e transformando o palco do festival em um episcopal acontecimento que ninguém ousou reclamar, Sly Stone (foto acima) passando como um rolo compressor com sua família musical contendo dois indivíduos brancos em sua formação, um jovem Stevie Wonder enlouquecendo a todos (e a si próprio) com uma apresentação sui generis à bateria, órgão e vocais e Nina Simone colocando 40 mil pessoas aos seus pés ao surrar as teclas de seu piano.

Forte candidato ao Oscar 2022 na categoria reservada aos documentários em longa-metragem, Summer of Soul – que já está disponível no Brasil via Telecine Play – ocupa maravilhosamente ocupa a prateleira de seminais registros que transpassam o universo do streaming e que merecem edições de luxo em formato físico.

Cotação: DEZ estrelas em cinco. Se isto for humanamente possível, claro!

Music

Prince

Novo álbum póstumo traz a banda de apoio New Power Generation em primeiro plano e apresenta clima de ensaio a céu aberto

Texto por Fabio Soares

Foto: Divulgação

Durante muito tempo, o termo The Vault atiçou a imaginação de ferrenhos fãs de Prince Rogers Nelson. Trata-se do porão-cofre-mina de ouro-caixa preta-arquivo master contendo todo o acervo audiovisual do artista instalado em Hollywood. O obsessivo controle sobre sua obra transformou The Vault em um ambiente inacessível a qualquer um que tentasse se aproximar. Após a morte do artista, ocorrida em 21 de abril de 2016, o arquivista Michael Howe deu a dimensão da excentricidade do ambiente. “The Vault está instalado num espaço de alta segurança, climatizado, à prova de oscilações ambientais e acidentes naturais”, afirmou, em 2019, sem revelar a exata localização do ambiente nem debaixo de um decreto.

Fonte quase inesgotável de pesquisa, The Vault já havia dado ao mundo nove álbuns póstumos de Prince. No final de julho, o décimo desta esteira deu seu ar da graça. Gravado na primavera de 2010, Welcome 2 America (Legacy/Sony) traz um Prince que queria distância dos holofotes.

De forma discreta e emulando um rap, sua voz abre o disco com a faixa homônima com uma incisiva crítica ao american way of life (“Bem-vindo à America/ Onde você pode falhar no seu trabalho/ Seja demitido, recontratado/ E receba uma gorjeta de setecentos bilhões de dólares”). Depois, a trinca de ases formada por “Running Game (Son Of A Slave Master)”, “Born 2 Die” e “1000 Light Years From Here” apresenta a cozinha standard da New Power Generation – sua principal banda de apoio durante a carreira – em sua melhor forma, fincando os pés no r&b com matadoras linhas de baixo. Em “Hot Summer”, camadas de sintetizadores tentam dar à faixa um ar oitentista sem parecer piegas.

O clima do disco é de um ensaio livre, porém com regras a serem cumpridas. Longos solos de guitarra são proibidos. Larga duração das faixas, idem. A ordem é passar a mensagem da forma mais crua possível, como na belíssima “Stand Up And B Strong” com seu quase otimismo gospel (“Está quase amanhecendo/ Levante-se e seja forte/ Encontre uma nova canção/ Antes que eles se vão”). Exercita ainda seu lado crooner na romântica “When She Comes” (“Quando ela vem/ Nunca fecha os olhos/ Não, não, não/ Ela pode ver estrelas”) para, a seguir, novamente pôr seu swing à prova em “1010 (Rin Tin Tin)”. E vamos combinar que em matéria de swing a NPG manja dos paranauê tudo.

Se tivesse saído em turnê baseada em Welcome 2 America, Prince iria se apresentar em pequenos palcos e clubes porque a sonoridade do disco em nada solicita o apelo de grandes arenas. Estaria ele propositalmente procurando intimistas ambientes a fim de se desintoxicar? Apostaria um braço que sim. Com um combo sonoro aos seus pés, um dos maiores artistas do século 20 podia experimentar à vontade em 2010. Bem verdade que Welcome 2 America está longe de tentar ser um dos momentos mais brilhantes de Prince. É um ensaio. Momento este em que o músico pode (e deve) usar como um “esquenta”. Ideal para audições despretensiosas, sem cobranças, de forma leve. Leve, como nossas vidas deveriam ser.

Music

Gulabi + Dopamina + Naome Rita – ao vivo

Punk rock, feminismo, letras pungentes e três boas bandas underground deram o tom do sábado pré-carnavalesco em Curitiba

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Naome Rita

Texto por Guilherme Motta

Fotos: Nicole Micaldi

Para entrar no embalo do carnaval, no último sábado antes da folia, dia 23 de fevereiro, as mulheres da cena musical punk curitibana realizaram um evento animal na Casa Luz Del Fuego (antiga Lavanderia), na capital paranaense. O evento contava com dois ambientes. Em um deles, tocaram três bandas formadas apenas por mulheres. Em outro havia DJs convidados soltando as mais diversas tracks para embalar o bailinho.

Como aqui o papo é de punk rock e afins, então vamos direto ao ponto. Naome Rita, Dopamina e Gulabi. Essas são as três bandas que se apresentaram no menor, mais quente e aconchegante espaço destinado a shows da cidade. Um evento organizado apenas por mulheres, movimentando a cena punk feminina, que infelizmente nos últimos tempos tem mostrado pouco a cara pela cidade. Porém, felizmente esta noite mostrou o quanto a cena tem força e é unida pelo slogan “Punk rock não é só pro seu namorado”.  Inclusive, todas os grupos envolvidos ali têm em comum a participação em uma coletânea-tributo a uma das bandas mais animais do cenário punk feminista (e que será lançada em breve), o Bulimia.

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Dopamina

A abertura do evento ficou por conta do duo curitibano Naome Rita, que colocou todos para dançar apertadinhos no porão. As letras explicitamente politizadas abordam assuntos como feminismo, assédio e política em geral. Os riffs de guitarra passeiam entre o mais puro punk rock e em alguns pontos lembram o rock alternativo dos anos 1990. Não se pode deixar de falar aqui no destaque da noite, a música “Dado”, uma homenagem ao querido ator Dado Dollabela (quer alguém “mais feminista” que ele?!?!).

Em seguida, para dar continuidade ao estrondo, entrou para se apresentar outra banda curitibana, a Dopamina. Punk puro, político, do jeito que tem que ser feito, com poucos acordes, velocidade e gritos de resistência. O power trio colocou todo mundo pra cantar Bad Religion! E também, como não podia faltar claro, Bulimia.

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Gulabi

Fechando o espetáculo e a noite, a banda paulista Gulabi, que conta com uma integrante curitibana. Instrumental rápido e direto, sem firula. Um tapa na cara. As duas vocalistas se revezam nos gritos de ordem, em especial na música “Nada Aos Fascistas!”. Resistência e correria é o que define todas ali. Uma energia em que não existe possibilidade alguma de ficar parado sem dar um empurrão aqui e outro ali no meio da galera.

Resta aqui um pedido pra toda cena punk feminina, para que continuem fazendo eventos assim, tomando o espaço que sempre foi ocupado majoratiriamente pelos homens. Revivam os cenários dyke punk e riot grrrl. Que entre meados dos anos 1980 até a década seguinte colocou em destaque para o mundo muitas bandas femininas influentes para o punk como um todo. Espera-se que agora, um tempo depois, elas continuem surgindo.