Movies

Uma Vida – A História de Nicholas Winton

Produção da BBC conta como um jovem britânico salvou 669 crianças da morte e do sofrimento na invasão nazista de Praga em 1938

Texto por Abonico Smith

Foto: Diamond Films/Divulgação

Depois de ganhar alguns anos atrás, o Oscar dando um show de interpretação como o idoso com a doença de Alzheimer em Meu Pai, seria nada anormal se esperar ver o ator voltar logo às telas em outra história carregada de drama, sofrimento e relações com o passado. E é exatamente o que acontece com Uma Vida – A História de Nicholas Winton (One Life, Reino Unido, 2023 – Diamond Films).

Hopkins interpreta também octogenário corretor da bolsa de valores do interior inglês que entrou para a História por um grande feito humanitário em 1938: conseguiu tirar 669 crianças checas de Praga um pouco antes da ocupação das tropas nazistas de Hitler na cidade, dando a elas lares adotivos temporários (e que em muitos casos viriam a se tornar definitivos) oferecidos por famílias da região em torno da cidade de Hampstead. Anthony, no final dos anos 1980, acaba por se pegar confrontado com o que fizera meio século antes e que, de uma maneira ou outra, acaba por lhe atormentar o espírito pela incapacidade de tornar ainda maior em números a sua façanha.

Enquanto Winton se depara com as memórias e os documentos que comprovam suas atitudes, o espectador enfrenta um didático vai-vem temporal, cheio de flashbacks que fazem o filme focar nas ações do jovem corretor para justificar o trocadilho do título original – afinal, a tal vida do nome pode se referir tanto ao ápice da vida do então jovem solteiro e bastante intrépido Nicky (com muita ajuda de sua mãe, por sinal) como a de cada criança que fora levada de trem de Praga a Londres por meio de artimanhas diplomáticas.

Como a produção conjuga a grife da BBC, é tudo mostrado com excesso de sentimentalismo em diálogos, ângulos de câmera e intervenções da trilha sonora. O diretor James Hawes, que tem no currículo dos últimos dez anos um monte de séries para a TV (Black Mirror, inclusive), junta-se aos dois roteiristas (Barbara, filha de Nicky, recebe um terceiro crédito pelo fato da história ser adaptada de um livro que lançara sobre o caso de seu pai) sem muita  ousadia na forma. Tudo bem aos moldes das produções tradicionais da British Broadcasting Corporation voltadas a pessoas ordinariamente comuns mas com algum fato bem interessante no decorrer de sua vida. Sem riscos, mas também sem falhas. Pragmatismo ao extremo.

Hopkins brilha ao encarnar um homem cheio de ambições passadas mas extremamente bonachão e queito nos tempos atuais da narrativa, contudo ele não é o único a se destacar na atuação. Helena Bonham Carter, mais discreta do que nunca na caracterização de um personagem recente, também conquista o espectador nos poucos minutos de tela como a impetuosa coadjuvante Sra. Winton, sempre disposta a ajudar seu jovem filho. A sueca Lena Olin (esposa de Nicky, mãe da então grávida Barbara) e o músico-ator sulafricano Johnny Flynn (o quase trintão Nicky durante os flashbacks) também encabeçam o elenco de primeira desta obra, que por mais que se refira a algo que ocorreu quase um século atrás, torna-se ainda mais atraente por traçar paralelos com as crianças de hoje em dia que estão sofrendo quase o mesmo horror em outro massacrante conflito não muito distante dali de Praga.

Movies

Eu, Capitão

A aventura de dois adolescentes senegaleses que tentam entrar ilegalmente na Europa pela lente de polêmico cineasta italiano

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora/Divulgação

Suavidade é uma palavra praticamente inexistente no léxico cinematográfico de Matteo Garrone. O cineasta italiano, por sinal, é bastante ardiloso ao envolver o espectador com belas imagens, daquelas de encher os olhos e prender de vez a atenção em seu longa-metragem. Entretanto, com requintes de crueldade, dá aquela reviravolta e passa a pincelar a história com tomadas violentas, incômodas, daquelas de fazer quem está vendo na mesma vibe de sofrimento de quem está levando a pior na tela.

Ë assim novamente com sua mais nova obra, Eu, Capitão (Io Capitano, Itália/França/Bélgica, 2023 – Pandora), um dos cinco títulos finalistas para a disputa do Oscar de Filme Internacional neste ano. Chegando nesta semana ao circuito brasileiro, a história gira em torno da tentativa de dois primos adolescentes senegaleses que usam dia após dia surradas camisas e agasalhos de seleções e clubes de futebol europeus. Eles estão em busca de um grande sonho: deixar para trás a vida na pobreza na periferia de Dacar e embarcar em uma viagem rumo ao continente europeu, onde lá pode ser vivida uma vida melhor e mais digna, com mais oportunidades para trabalho, sobretudo no meio da música, a grande paixão do protagonista Seydou (Seydou Sarr, um então desconhecido talento que aponta para um grande futuro tanto na dramaturgia quanto na música). Ele e Moussa (Moustapha Fall) juntam uma boa grana em segredo e partem sem avisar ninguém, nem mesmo as mães. São alertados algumas vezes de quão perigosa é a tentativa de cruzar o Mediterrâneo em condições precárias para emigrar de modo ilegal pelo território italiano. Mas nem dão bola para isso. Fala mais alto o idealismo, a bravura, a esperança, a coragem e aquela impulsividade típica dos jovens somada à certeza de que absolutamente nada vai dar errado.

Então Seydou e Moussa partem para uma aventura que, sob a direção de Garrone, torna-se tão bela quanto épica no início. Uma das primeiras dificuldades é a sobrevivência no deserto árido, sob sol escaldante e aquela sensação angustiante de só se ver areia para todos os lados, até a linha do horizonte. Durante o começo da trip, então, vem a Seydou o primeiro sinal e que sempre alguma coisa pode dar muito ruim, quando ele se separa do primo e do grupo com os outros andarilhos para tentar socorrer uma mulher à beira da morte por sede. É justamente aí que Matteo tem a oportunidade de inserir outros elementos típicos de seus longas: a polêmica, o realismo fantástico e a mitologia. Na tela, Seydou passa a puxar pela mão a mulher que voa candidamente, enquanto o espectador se confunde, sem saber o que é realidade e o que é alucinação (de ambos!). Quando mais a situação vai se tornando perigosa para o garoto, mais Garrone vai trabalhando suas características no desenrolar da história.

O que se mostra ser um road movie pintado por tintas da triste realidade de uma questão social que se abate entre os migrantes ilegais que tentam passar da África para a Europa. Quem verdadeiramente se aproveita do sonho ingênuo de quem embarca na tentativa de deixar uma vida para trás e recomeçar outra do zero? O que acontece com quem morre no meio do caminho? E o que é feito com aqueles que conseguem atravessar o Mediterrâneo e chegar ao outro lado? São perguntas que o cineasta vai fazendo brotar na cabeça de quem assiste sem perder a chance de desenvolver uma trama ficcional em torno disso tudo, com muito de sua assinatura pessoal, que vem chamando a atenção do universo da moda e do cinema hollywoodiano nos últimos quinze anos.

Talvez este conjunto de coisas impactantes tenha impulsionado Eu, Capitão para a disputa final com outras grandes produções não faladas na língua inglesa. Muito provavelmente não deveria ganhar, mas ajuda a compor um excelente time de obras de fora do eixo nesta temporada.

Books, Movies

Argylle – O Superespião

Trama de espionagem onde não se sabe o que é realidade ou ficção apresenta ao cinema um novo agente secreto galã

Texto por Abonico Smith

Foto: Apple/Universal/Divulgação

O universo da espionagem sempre foi um terreno fértil para a literatura. Ao mergulhar na leitura das páginas de histórias como as de Frederick Forsyth, John Le Carré e Ian Fleming, a mente de cada um molda e fantasia a seu modo toda aquela riqueza imagética proporcionada pelas tramas criadas por escritores que dominam com perfeição esse universo de mistério, suspense, intrigas e reviravoltas. Por isso que livros deste naipe de escritores – sobretudo os de Fleming, criador de James Bond – costumam ganhar adaptações vibrantes para o cinema.

Elly Conway também participa do seleto grupo de criadores literários. Depois de transportar ao papel as aventuras do misto de espião e galã Argylle, conheceu rapidamente a fama, mesmo ainda optando por continuar a sua vida de reclusão e completamente fora dos holofotes. Tendo a companhia segura apenas de seu gato scottish fold batizado Alfie, ela já publicou uma série de quatro livros consecutivos até, de uma hora para a outra, sua vida apresentar um revertério e ela entrar em uma espiral de acontecimentos que parecem ter sido extraídos de tudo aquilo que escreve.

Esta é a premissa de Argylle – O Superespião (Argylle, Reino Unido/EUA, 2024 – Apple/Universal Pictures) a mais nova iniciativa cinematográfica a gravitar em torno das histórias de espionagem. O cineasta Matthew Vaughn, não é um iniciante na temática: dirigiu a trilogia, também britânica, Kingsman. O ator Hanry Cavill, que vive o personagem de sucesso, muito menos – já atuou em outros três longas anteriores do tipo. A principal questão aqui é justamente a respeito da protagonista interpretada por Bryce Dallas Howard. A escritora é real – junto com o filme nas telas de todo o mundo, está chegando às lojas, editado pela cultuada Penguin Books, o livro “um” do agente secreto. Entretanto, ninguém conhece a sua verdadeira identidade. Quem estaria por trás do pseudônimo? Fãs de Taylor Swift já se alvoroçam nas redes caçando pistas e conclusões que levariam a cantora à resposta do mistério. Também tem gente especulando que JK Rowling poderia ter se aventurado em outra seara bem além da fantasia e das bruxarias adolescentes.

Se o lançamento em conjunto de duas mídias movimenta o meio cultural e seus seguidores ardorosos, cabe ao filme de Vaughn tomar a posição de carro-chefe ao misturar, com maestria, realidade e ficção em sua trama. Pouco a pouco Conway se vê no mais completo desespero de não saber mais no que acreditar e em quem deve confiar. Em um piscar de olhos, a parit de uma mera decisão tomada por impulso, sua vidinha pacífica e monótona se desconstrói por completo. Argylle existe de fato? Sua interação com ele não passa de alucinação de uma cabeça em frangalhos? O mundo seria de fato extenso e algo muito além de sua confortável casa? Ações, instintos e palavras seriam remanescências do passado que, por alguma razão, ficaram escondidas em algum canto de seu cérebro.

A primeira metade do filme de Vaughn empolga. Mistura suspense com muita ação e largas doses de comédia, traz coadjuvantes de luxo (Samuel L Jackson, Sam Rockwell, Ariana DeBose, Bryan Cranston e a popstar Dua Lipa, estreando como atriz no papel de uma loiraça femme fatale). As coreografadas cenas de luta e porrada rolam com o inusitado acompanhamento de música pop dançante. O espectador mergulha de cabeça com Conway em toda a sequência de confusões na qual ela se envolve, sempre com ótima atuação de Howard.

Contudo, à medida que a trama se desenvolve para ligar os pontos na mente de quem está assistindo a ela, o roteiro de Jason Fuchs (que também aparece na tela em uma ponta) vai se perdendo. É tanta ponta solta que precisa ser ligada na mesma teia que o gás vai se perdendo e a narrativa passa a correr para que tudo possa fazer efeito na mais completa suspensão da descrença espalhada pela sala do cinema.

Ao final de quase duas horas e vinte minutos de projeção, vem a conclusão de que aquele filme que começou o novelo tentando apresentar algo divertido e criativo dentro do universo da espionagem acabou virando um mais do mesmo justamente porque enfileirou fórmulas dos filmes de ação que brotam aos montes em Hollywood. Quando começam os créditos finais a sensação de uma certa decepção toma conta. Isso até chegar uma misteriosa cena do espião Argylle. Aí, quem sabe, nem tudo esteja perdido…

Movies, TV

Saltburn

Um estudo ácido da fantasia de ascensão social da classe média com polêmicas e a primorosa atuação de Barry Keoghan e Jacob Elordi

Texto por Tais Zago

Foto: MGM/Amazon/Divulgação

Desde novembro do ano passado, quando foi lançado na plataforma Prime Video, Saltburn (Reino Unido/EUA, 2023 – MGM/Amazon), vem agitando a critica de cinema, sobretudo a amadora. Há tempos não viamos um filme tão polarizante: as avaliações vão do zero ao dez em uma mesma pagina de comentários. Intrigada, deixei para assisti-lo nas férias de final de ano e, assim como mais ou menos 50% dos cinéfilos, eu amei o filme. Mas, calma, vou explicar o porquê, mesmo que minha interpretação não tenha passado pela cabeça dos produtores ou roteiristas.

A jovem atriz e já muito premiada Emerald Fennell assina a direção e o roteiro desse thriller ácido e provocador sobre um grupo de estudantes da renomada universidade de Oxford nos anos 2000, mas principalmente sobre a intensa amizade entre Felix Catton (Jacob Elordi) e Oliver (Barry Keoghan). Fennell, ela mesma uma milennial, afirma que algumas de suas experiências universitárias influenciaram a criação do roteiro original. Isso, claro, sempre atribui um toque especialmente nostálgico às produções.

Saltburn, como anda na moda ultimamente, é um filme que cria uma atmosfera, uma vibe de uma época em especial. Para realçar esse clima, a caprichada produção não poupa nada em apuros técnicos e detalhes para proporcionar ao espectador a experiência mais próxima possível da realidade de abastados ingleses curtindo despreocupadamente a juventude enquanto fogem de seus fantasmas pessoais. São jovens explorando limites e curtindo a vida como se não houvesse aula amanhã de manhã (quem nunca passou por essa fase que atire a primeira pedra!). 

Mas seria ingênuo afirmar que o filme fica apenas nesse triangulo festa-ressaca-responsabilidade de adulto. A trama central trata de obsessão, ódio, inveja e ressentimentos que usam a fantasia do encantamento amoroso com verniz para encobrir sua feiura. A acusação mais frenquente dos desgostosos é a de que Saltburn seria um quase plágio de O Talentoso Mr. Ripley (1999). Não há como negar os paralelos, porém Saltburn tem outro foco e do meio para o fim não sabemos mais direito onde estamos pisando. Seria Oliver um pobre menino pobre e Felix um pobre menino rico? A síndrome de salvador de parte da elite mundial seria uma porta aberta para uma vingança dos menos abastados? Estamos assistindo a uma orgia entre psicopatas de diversos calibres? Talvez tudo junto. Ou nada disso. Para mim, Saltburn é um estudo ácido e irônico da fantasia de ascensão social da classe média, da relação de amor e ódio pelo dinheiro, sobre uma infinita insatisfação do ser humano pelo o que possui, independentemente de posição social.

Já o que é indiscutível sobre essa produção são as primorosas atuações de seus atores, Barry e Jacob. À intensidade da interação dos dois nos causa arrepios e não somente pela delicia visual de seus corpos e rostos esteticamente perfeitos – o que também tem gerado um certo frisson. A câmera nesse filme é um voyeur dos mais experientes. Ela nos leva à um mergulho na intensidade do desejo de Oliver: sentimos com ele o gosto da água da banheira ou da terra (e aqui não vou dar spoilers do contexto para os que ainda não assistiram ao longa).

A onda do cinema sensorial chegou com força – para os menos estetas, isso vem como uma prova de frivolidade e fraqueza dos roteiros. Se for analisado friamente, Saltburn é uma piada pra qualquer investigador de mesa de boteco e de podcast de true crime e é exatamente por essa obviedade de tamanho descuido que escolhi considerá-lo genial. Saltburn não é um retrato da realidade. Acho que nem almeja ser. Eu entendo o filme como um wetdream de um jovem que sonha com reconhecimento e fortuna, com sexo, drogas e tuxedos. Com exageros e indulgências. Com um amor canibalístico que devora o outro por completo. Um acerto de contas com quem nasce em berço dourado. Um delírio pós-puberdade. Um coming of age de acidez macabra

Se nada disso estimular o interesse pelo filme, ainda temos Elordi como eye candy. O muso da série Euphoria aparece sensualizando em quase todos frames. E esse foi um dos motivos para que Saltburn tivesse uma das estreias mais concorridas dos últimos tempos e recebesse o titulo de filme polêmico de 2023. A estrela de Jacob está em ascensão, assim como o incrivel talento de Barry Keoghan, que provavelmente receberá indicação para o Oscar pela interpretação de Oliver. E se mesmo assim você ainda estiver em duvida, vale a pena conferir o filme para ver Rosamund Pike como Elspeth Catton, a obtusa, alienada e fria mãe de Felix e Venetia (Alison Oliver).

Movies

Os Rejeitados

Química improvável na relação entre professor ranzinza e aluno rebelde é uma das mais gratas surpresas da temporada

Textos por Abonico Smith e Tais Zago

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Títulos como O Clube dos Cinco, Conta Comigo e Sociedade dos Poetas Mortos estão até hoje nos corações e mentes de qualquer cinéfilo aficionado pelas produções do cinema pop americano da década de 1980. Além de exalar o frescor da juventude em suas histórias, estas obras abordam temas de suma importância para esta fase da vida como diversidade, tolerância, paciência, lealdade e, sobretudo, autoconhecimento. Mergulham fundo no âmago humano e por isso mesmo são celebradas até hoje por quem ainda prefere um cinema mais real e sem aquela enxurrada de CGI que rola nos blockbusters da atualidade.

Os Rejeitados (The Holdovers, EUA, 2023 – Universal Pictures) parece ter sido feito para bater lá no fundo dessa turma. Assinado por Alexander Payne, um cineasta que tem como características a economia de obras ao longo da carreira em prol de projetos mais profundos e menos comerciais, o filme vem provocando burburinho desde o seu lançamento no último festival de Toronto. Foi adquirido pela distribuidora Focus Features pela “bagatela” de trinta milhões de dólares e chega agora aos cinemas brasileiros acompanhado de altas expectativas para esta safra de premiações. No último domingo, Paul Giamatti e Da’Vine Joy Randolph ganharam o Globo de Ouro como ator de musical ou comédia e atriz coadjuvante e aparecem como apostas seguras para figurar entre os indicados ao próximo Oscar. Filme, direção, roteiro e ator coadjuvante (o estreante Dominic Sessa) também podem ser outras categorias beliscadas. Nada mau para uma produção extremamente autoral, de relativo baixo orçamento, sem grandes pretensões de bilheteria e que vai buscar no passado – tanto na trama quanto na estética – inspiração para comer pelas beiradas e se fixar como um dos grandes longas da temporada.

De um lado temos o veterano professor de História Paul Hunham. Ele vive sozinho, dentro do próprio internato onde leciona, incrustado em algum canto do norte dos EUA, onde não para de nevar no inverno. Não se casou, não tem muita paciência para conviver com outras pessoas além de suas obrigações profissionais. Leva tudo com rigidez extrema, a ferro e fogo, dentro e fora da sala de aula. Angaria a antipatia de seus alunos e não larga uma garrafa de uísque. Portanto, é o típico personagem mal humorado no qual Giamatti se encaixa perfeitamente para atuar.

Do outro, um aluno insuportável e rebelde ao extremo chamado Angus Tully. Ele também amarga um alto índice de rejeição, mas por sua própria família. Ignorado pela mãe – que não pensa duas vezes antes de “trocá-lo” pelo novo marido – ele acaba tendo de passar as semanas que antecedem Natal e Ano Novo na própria escola. Esta é a época na qual crianças e adolescentes ganham um período de intervalo das aulas para voltar às suas casas e rever os parentes mais próximos. A escola fica praticamente vazia por três semanas e Tully (Sessa) precisa se resignar a ficar por lá. Sem os colegas de turma para sacanear, com um professor linha-dura no seu encalço o dia todo, vigiando seu comportamento quase sempre inadequado.

No meio disso quem também passa o break de inverno em Barton é Mary Lamb, a cozinha-chefe do refeitório que alimenta diariamente docentes e alunos. Sua maior luta é superar o período de luto – seu filho, que estudava e morava com ela por lá, foi morto em guerra, durante o serviço militar. Além de Angus e Paul, seus únicos companheiros no local são o jardineiro (que também fica por lá), os cigarros e os populares programas de auditório exibidos pela televisão. Mary é o vértice do triângulo que mais expõe seus problemas pessoais e emocionais.

Os três acabam criando elos emocionais improváveis, especialmente Tully e Hunham. Aos poucos, um vai descobrindo o outro e nutrindo sentimentos de pai e filho, como confiança e afeto. Ambos mostram, mesmo não querendo mostrar, ser altamente carentes disso, o que justifica a química quase imediata entre eles. A partir da metade final, quando Os Rejeitados se transforma em road movie e muitas das cenas se passam distantes de Barton, fica impossível para a dupla não manifestar novas descobertas e sensações (o que, por sinal, mais caracteriza um road movie: o deslocamento geográfico provocando deslocamentos internos). Se até então o espectador já está bastante envolvido com os dois, embarcar no melhor da viagem pisando no acelerador torna-se inevitável.

Este filme se passa nos últimos dias de 1970. Portanto, Payne tenta recriar a época da maneira mais fidedigna possível. Aproveita somente iluminação e locações reais (nada aqui fora reconstruído em estúdio) e usa a pós-produção para dar mais credibilidade à estética de seu filme. Filmou tudo por meio da câmera manual Alexa Mini, da Arri, e inseriu posteriormente a granulação e outras sujeiras visuais típicas do celuloide. Até mesmo antes da primeira cena o cineasta brinca com a estética retrô: inclui o mesmo selo de Rated R que carimbava muitos dos filmes daquela época. Utiliza também artistas do período, como o poeta e cantor britânico Labi Siffre e as bandas, respectivamente galesa e holandesa, Badfinger e Shocking Blue.

Sem muitos radicalismos na narrativa e tocando no coração de quem senta na poltrona para ver o filme, Os Rejeitados desponta como um possível “azarão” para faturar o prêmio máximo da noite promovida pela academia cinematográfica norte-americana. Por não desagradar a muita gente, não corre o risco de receber notas muito baixas no ranking designado como critério para o quesito “melhor filme”. Na soma final de todos os votantes, corre o risco de terminar na liderança. Mas, se não ganhar, pelo menos, marcará a temporada como uma de suas obras mais queridas. Justamente retornando ao tempo em que Hollywood se salvou da bancarrota sendo cada vez menos Hollywood e trocando superficialidade pela densidade. (AS)

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Em meados dos anos 70, Paul Hunham (Paul Giamatti), um professor solitário e isolado socialmente, acaba sendo forçado a passar o feriado de Natal no colégio interno onde leciona para jovens privilegiados nos arredores de Boston. Os jovens aos seus cuidados foram deixados de lado, voluntaria ou involuntariamente, por suas famílias durante as festas de final de ano. 

Mas não se engane, não temos em Os Rejeitados (The Holdovers, EUA, 2023 – Universal Pictures) um O Clube dos Cinco (1985) setentista. Logo no começo das férias natalinas o pai de Jason Smith (Michael Provost), um dos cinco jovens “ilhados” na Escola, é acometido por um arrependimento abrupto e acaba “resgatando”, com seu helicóptero, quatro dos rapazes para uma luxuosa estação de esqui. Apenas um, Angus Tully (Dominic Sessa), acaba ficando para trás. Tragicamente ele não conseguiu fazer contato com a mãe para receber autorização para o passeio. Decepcionado, o jovem acaba ficando no colégio frio e vazio junto a seu odiado professor de história Paul, a cozinheira Mary Lamb (Da’Vine Joy Randolph) e outro funcionário da manutenção.

Aos poucos uma inusitada conexão começa a se formar entre Paul, Angus e Mary. A cozinheira estava passando o primeiro Natal sem o filho, também aluno da escola, que fora morto no Vietnam.  Com o passar dos dias frios e escuros, o luto da mãe acaba se misturando ao luto e a raiva do jovem. Tully está afastado do pai e abandonado pela mãe após ela se casar novamente. Ao mesmo tempo, a misantropia e o distanciamento inicial de Paul vão dando lugar à empatia pelo aluno e seu drama pessoal. Dentro de suas limitações, os três passam a permitir que alguns prazeres e alegrias mundanas permeiem seu convívio e diminuam seus sofrimentos durante a época das festas.

O diretor Alexander Payne escolheu o tema mesmo sem ter qualquer experiência pessoal com colégios internos. O roteiro original é assinado por David Hemingson, que tinha criado a narrativa pensando em uma série televisiva. Mesmo assim, a junção criativa entre Payne e Hemingson e o fantástico elenco nos trouxe uma pequena pérola que já está colhendo os louros por sua sensibilidade. Sem grandes exageros dramáticos, mas com muito coração, Os Rejeitados nos envolve. As cenas são pontuais; as reações, verdadeiras; os diálogos, repletos de insight. É uma verdadeira tragicomédia da vida pequeno-burguesa e uma crítica a escolas sisudas e ‘tradicionais”. Na trilha sonora temos até Cat Stevens (“The Wind”) nos momentos em que professor e aluno trocam cândidas experiências natalinas, algo que nos remete, mesmo que inconscientemente, ao clássico Ensina-me a Viver (1971).

Paul e Angus, duas personalidades tão diferentes e tão próximas. Ambos acabam descobrindo que lutam contra a depressão por fatores diversos, mas possuem em comum uma profunda solidão e a dor do abandono. Em Mary, Angus encontra um afeto genuíno e sem afetação. O título em português, Os Rejeitados, é exatamente o que a história sugere: um grupo de outcasts, completamente diferentes entre si, que encontram pontos comuns em seus sofrimentos e buscam o alívio de suas tristezas oferecendo apoio emocional uns aos outros. 

Somos, então, agraciados com estranhos saudosos de um Natal com família ou amigos, pela ausência ou pela rejeição. Um drama triste, um coming da relação professor/aluno sem apelar para clichês no estilo de Sociedade Dos Poetas Mortos (1989). Uma transferência materna entre Mary e Angus sem apelar para o melodrama desnecessário. Todos aqui possuem feridas abertas, novas ou antigas. A ajuda é mútua e balanceada. E a lição final que fica é a de que nunca é tarde demais para quebrar algumas regras que para nada mais nos servem a não ser representar o papel de algemas para nossa liberdade e felicidade. É a permissão para ser alegre, mesmo em situações difíceis. Um sorriso no meio do solo desolado da tristeza. (TZ)