Books, Movies

Argylle – O Superespião

Trama de espionagem onde não se sabe o que é realidade ou ficção apresenta ao cinema um novo agente secreto galã

Texto por Abonico Smith

Foto: Apple/Universal/Divulgação

O universo da espionagem sempre foi um terreno fértil para a literatura. Ao mergulhar na leitura das páginas de histórias como as de Frederick Forsyth, John Le Carré e Ian Fleming, a mente de cada um molda e fantasia a seu modo toda aquela riqueza imagética proporcionada pelas tramas criadas por escritores que dominam com perfeição esse universo de mistério, suspense, intrigas e reviravoltas. Por isso que livros deste naipe de escritores – sobretudo os de Fleming, criador de James Bond – costumam ganhar adaptações vibrantes para o cinema.

Elly Conway também participa do seleto grupo de criadores literários. Depois de transportar ao papel as aventuras do misto de espião e galã Argylle, conheceu rapidamente a fama, mesmo ainda optando por continuar a sua vida de reclusão e completamente fora dos holofotes. Tendo a companhia segura apenas de seu gato scottish fold batizado Alfie, ela já publicou uma série de quatro livros consecutivos até, de uma hora para a outra, sua vida apresentar um revertério e ela entrar em uma espiral de acontecimentos que parecem ter sido extraídos de tudo aquilo que escreve.

Esta é a premissa de Argylle – O Superespião (Argylle, Reino Unido/EUA, 2024 – Apple/Universal Pictures) a mais nova iniciativa cinematográfica a gravitar em torno das histórias de espionagem. O cineasta Matthew Vaughn, não é um iniciante na temática: dirigiu a trilogia, também britânica, Kingsman. O ator Hanry Cavill, que vive o personagem de sucesso, muito menos – já atuou em outros três longas anteriores do tipo. A principal questão aqui é justamente a respeito da protagonista interpretada por Bryce Dallas Howard. A escritora é real – junto com o filme nas telas de todo o mundo, está chegando às lojas, editado pela cultuada Penguin Books, o livro “um” do agente secreto. Entretanto, ninguém conhece a sua verdadeira identidade. Quem estaria por trás do pseudônimo? Fãs de Taylor Swift já se alvoroçam nas redes caçando pistas e conclusões que levariam a cantora à resposta do mistério. Também tem gente especulando que JK Rowling poderia ter se aventurado em outra seara bem além da fantasia e das bruxarias adolescentes.

Se o lançamento em conjunto de duas mídias movimenta o meio cultural e seus seguidores ardorosos, cabe ao filme de Vaughn tomar a posição de carro-chefe ao misturar, com maestria, realidade e ficção em sua trama. Pouco a pouco Conway se vê no mais completo desespero de não saber mais no que acreditar e em quem deve confiar. Em um piscar de olhos, a parit de uma mera decisão tomada por impulso, sua vidinha pacífica e monótona se desconstrói por completo. Argylle existe de fato? Sua interação com ele não passa de alucinação de uma cabeça em frangalhos? O mundo seria de fato extenso e algo muito além de sua confortável casa? Ações, instintos e palavras seriam remanescências do passado que, por alguma razão, ficaram escondidas em algum canto de seu cérebro.

A primeira metade do filme de Vaughn empolga. Mistura suspense com muita ação e largas doses de comédia, traz coadjuvantes de luxo (Samuel L Jackson, Sam Rockwell, Ariana DeBose, Bryan Cranston e a popstar Dua Lipa, estreando como atriz no papel de uma loiraça femme fatale). As coreografadas cenas de luta e porrada rolam com o inusitado acompanhamento de música pop dançante. O espectador mergulha de cabeça com Conway em toda a sequência de confusões na qual ela se envolve, sempre com ótima atuação de Howard.

Contudo, à medida que a trama se desenvolve para ligar os pontos na mente de quem está assistindo a ela, o roteiro de Jason Fuchs (que também aparece na tela em uma ponta) vai se perdendo. É tanta ponta solta que precisa ser ligada na mesma teia que o gás vai se perdendo e a narrativa passa a correr para que tudo possa fazer efeito na mais completa suspensão da descrença espalhada pela sala do cinema.

Ao final de quase duas horas e vinte minutos de projeção, vem a conclusão de que aquele filme que começou o novelo tentando apresentar algo divertido e criativo dentro do universo da espionagem acabou virando um mais do mesmo justamente porque enfileirou fórmulas dos filmes de ação que brotam aos montes em Hollywood. Quando começam os créditos finais a sensação de uma certa decepção toma conta. Isso até chegar uma misteriosa cena do espião Argylle. Aí, quem sabe, nem tudo esteja perdido…

Movies

Asteroid City

Nova experiência estilística de Wes Anderson abusa da metalinguagem para fundir cinema e teatro com a ajuda de elenco estelar

Texto por Leonardo Andreiko

Fotos: Fox/Divulgação

O cinema de Wes Anderson, exemplo primoroso quando se deseja falar de “estilo”, é conhecido por esconder sob composições pasteis de simetria deslumbrante os conflitos mais fundamentais da experiência de uma vida. O coming of age em Moonrise Kingdom, a perda em Viagem a Darjeeling, para citar alguns. Asteroid City (EUA, 2023 – Fox), é claro, não poderia ser diferente.

Em seu mais recente lançamento, Wes usa sua abordagem lírica para mesclar o conflito existencial ao comentário sobre a própria natureza da arte, na mesma toada de A Crônica Francesa (2021). Se lá o autor se divertia com o ensaísmo e a literatura crítica dos anos 1960 e 1970, aqui seu pano de fundo é o teatro e, assim, permite uma viagem metalinguística que destaca Asteroid de sua filmografia, pelo menos em intento.

No filme, cinco adolescentes geniais e suas famílias vão a Asteroid City, uma minúscula cidade no deserto estadunidense em que só se encontram um complexo de pesquisa militar, um posto de gasolina e testes de bombas atômicas no horizonte. Aqui, uma camada de ficção dentro da ficção: assistimos a Scarlett Johansson, Jason Schwartzmann e um elenco estrelado interpretarem tanto as personagens da peça quanto os atores que os interpretam. Adrien Brody, Edward Norton e Bryan Cranston, por outro lado, só aparecem do lado de fora da peça, em que o verniz preto e branco retrata o próprio processo de produção.

Como mais um dos estrelados projetos de Wes Anderson, a lista de personagens é longa. Atores consagrados e em ascensão dividem a tela na composição de personalidades excêntricas e memoráveis. O foco do diretor, é bem verdade, reside nos conflitos existenciais de Augie (Schwartzmann), fotógrafo de guerra, e Midge (Johansson), atriz de cinema, ambos enlutados permanentemente.

O traço particular de Asteroid City é o conforto com que seu autor se permite esticar a matéria da ficção narrativa. Wes Anderson já está acostumado a desafiar a abordagem realista da sétima arte por meio de sua estética ordenada, mas se dispõe a rasgar estes limites ao escancarar o estatuto da peça de ficção (seja teatro, cinema ou qualquer outra) como ela mesma – criação pura. Desse modo, tudo que há de simbólico na instância teatral da narrativa transborda à instância metanarrativa – isto é, a produção da peça. As mazelas e conflitos de Augie Steenbeck são também as de seu ator e cenas da peça são omitidas do longa-metragem para dar vez a conflitos da produção. Um se torna o outro e vice-versa.

Se a peça revela a sinceridade do roteiro de Anderson, cuja marca como autor é a declamação das condições mais profundamente humanas que transparecem na linguagem apesar – ou melhor, por meio – do lirismo, a metalinguagem mais óbvia e orgulhosa de si a faz resplandecer. Asteroid City, imitando a estrutura formal do teatro, é divido em atos bem definidos, com pausas e intermissões. A partir do segundo, dentro e fora da peça se misturam. Narrador confunde sua deixa, as personagens exibem profundo conhecimento de seus conflitos internos ou de sua falta de resolução. E como tudo vaza, os subtextos e simbolismos de Asteroid City se completam em suas duas instâncias narrativas. A leve e jovial peça sobre o sentido da vida se torna o retrato de uma vida inteira em busca de respostas que jamais serão dadas. Em uma das sequências mais aterradoras e ao mesmo tempo esperançosas de sua filmografia, Wes Anderson faz o diretor da peça dar um conselho-chave a seu protagonista, inseguro sobre estar atuando da maneira correta:

– (JASON SCHWARTZMANN) Eu ainda não entendo a peça.

– (ADRIEN BRODY) Não importa. Só continue contando a história.

É verdade que Asteroid City apresenta algumas dificuldades de ritmo e demora a engrenar na aventura e nas experimentações metalinguísticas que são seu ponto alto. Contudo, resistir ao início lento pode trazer ao espectador uma obra que permanecerá em sua cabeça para muito além do letreiro de fim.