Documentário Diz a Ela que me Viu Chorar ganha o prêmio principal do evento internacional realizado em Curitiba
Texto por Leonardo Andreiko
Foto: Olhar de Cinema/Divulgação
Realizado entre os últimos dias 5 e 13 de junho com sessões no Espaço Itaú (Shopping Crystal), Cineplex Batel (Shopping Novo Batel) e Cine Passeio, o Festival Olhar de Cinema (Curitiba Int’l Film Festival), realizado pela primeira vez em 2012, de novo movimentou os amantes da sétima arte por vários dias nesta primeira quinzena do mês, entre exibições, oficinas, laboratórios e seminários.
O Mondo Bacana analisa abaixo alguns títulos incluídos na programação deste ano, que se dividiu em várias mostras: a infantil Pequenos Olhares; a experimental Outros Olhares; Olhares Clássicos, cujo nome é autoexplicativo; Olhar Retrospectivo, dedicada à primeira fase da carreira do diretor chileno Raúl Ruiz; Novos Olhares, com enfoque dado a cineastas contemporâneos em curta e longa-metragem; e a Competitiva, considerada a principal das seções do festival.
Diz a Ela que me Viu Chorar – Maíra Buhler
Um filme desoladoramente lindo. Esta é uma experiência calcada completamente na dura realidade social de um (extinto) programa habitacional de redução de danos, no qual usuários abusivos de drogas pesadas eram assistidos com um lar, comida, geração de trabalho e renda, segurança e saúde. Acompanhando múltiplos personagens, todos moradores deste “Hotel Social”, o longa abole as lentes grande-angulares, criando uma atmosfera fortemente documental e claustrofóbica. No entanto, a intensa rotina de gravação resulta numa cumplicidade tão grande com seus personagens, cujas histórias e conflitos pavimentam e contam toda a história do filme. Dessa forma, temos um vislumbre do universo assolador do vício em crack, em 85 minutos que nos fazem rir e chorar na mesma intensidade.
A montagem fluida do documentário faz com que este não perca seu dinamismo, mesmo sem ação ou quaisquer narrações – a diretora afirma não ter cogitado incluir-se como personagem nessa crua narrativa. Momentos se contrastam e complementam com tal naturalidade que, por diversas vezes, sente-se a arquitetura de um longa ficcional, ainda que a veracidade de seu gênero nunca se perca. Um grande aspecto, frequentemente rebaixado na história do cinema e sua crítica, é a edição de som e a gravação do som direto. Por exemplo, uma das sequências mais impactantes de todo o filme depende inteiramente de suas camadas e subcamadas sonoras. Funciona maravilhosamente.
Com um inerente discurso político de valorização do indivíduo, Diz A Ela Que Me Viu Chorar age como catalisador de críticas ao atual rumo dos governos brasileiros (Estado e seus estados) frente ao tráfico e abuso de drogas, provando o que a classe política nunca poderia ter esquecido: são pessoas, com seus desejos, conflitos, risos, amores e dores. Como bem ilustra um dos personagens, esse universo só precisa de amor. Só precisa de atenção.
No encerramento do evento, ganhou o prêmio oficial de melhor filme da mostra Competitiva deste ano.
MS Slavic 7 – Sofia Bohdanowicz e Deragh Campbell
Uma obra extremamente pessoal, MS Slavic 7 é um média-metragem focado na troca de cartas entre Zofia Bohdanowiczowa (bisavó de uma das diretoras) e Jósef Mittlin, dois poetas poloneses refugiados na América durante a segunda guerra mundial. Infelizmente, não há muito a adicionar. O grande problema do filme, além do aparente amadorismo na direção, é a falta de uma narrativa intrigante. Em outras palavras, faltam eventos para instigar conflito em seus 57 minutos. Além disso, a vagarosidade da obra é amplificada pela má montagem, confusa e estática, cujo ritmo picotado interrompe a naturalidade dos (poucos) diálogos do filme.
Outro ponto de ruptura da imersão do filme é uma das sequências que mais é salientada em tela: quando não está lendo as cartas, a protagonista explica sua interpretação em monólogos longuíssimos, cuja mise-en-scène imita o plano-contraplano comum de diálogos. Assim, o espectador fica à espera da resposta de um personagem, seja sonora ou um simples plano de sua reação, e frustra-se, é claro. A título de breve contextualização, toda a densidade laureada no filme anterior contrasta fortemente com a rasa progressão de MS Slavic 7.
A Vocação Suspensa – Raúl Ruiz
A linguagem do consagrado autor chileno se faz elemento principal de sua primeira parceria com o Instituto Nacional do Audiovisual Francês (INAM), que coproduziu filmes da Nouvelle Vague. Exilado, Ruiz conta aqui uma história bem política, que se passa num conflito eclesiástico sob dois pontos de vista. Mais especificamente, o diretor monta dois filmes em um. Dois lados opostos da disputa são pano de fundo para dois longas com os mesmos personagens – gravados em momentos diferentes, com estéticas conflitantes. Um deleite de semântica fílmica.
Ainda mais, os diálogos do filme são extremamente densos, repletos de camadas filosóficas. Agostinho de Hipona, Leibniz e demais metafísicos podem ser interpretados desde seu início. Como a própria projeção anuncia, A Vocação Suspensa depende de uma reflexão do ditado do santo católico, replicado por Stalin, “em uma cidade sitiada, qualquer dissidência é traição”.
Casa – Letícia Simões
Em uma narrativa extremamente intimista, a diretora carrega o espectador por entre os calos de sua família. Terno, o filme não tem interesse algum em mascarar estas dificuldades de convivências, escancarando-as. Assim, as discussões e diálogos subsequentes transformam-se em personagens de Casa. Em sua estreia mundial, ainda em corte duro (rough cut é o primeiro corte de um filme, do qual surgem as versões mais “refinadas”), o longa apresenta alguns problemas de montagem, cujo efeito arrasta um pouco a trama – completamente baseada em seus personagens. Ainda assim, momentos lindos são configurados pelo poder da mesma montagem. É confuso, mas os melhores momentos sobressaem muito aos piores, que não chegam a ser ruins.
Casa é um documentário poético, íntimo e voraz feito por Letícia. Com calma, vai abrindo camadas e feridas da história de suas protagonistas e, logo, de si mesma. As mágoas e conflitos das três mulheres ecoam as mágoas e conflitos de nós, o público.
No encerramento do evento, levou o prêmio da crítica de melhor longa-metragem da mostra Competitiva deste ano.
Naomi Campbel – Camila José Donoso e Nicolás Videla
Este misto de ficção e documentário desenvolve a narrativa de Yermén, uma mulher trans em busca de uma cirurgia de troca de sexo. Intercalando entre uma gravação profissional (em aspecto 21:9) e brutas filmagens feitas pela protagonista – que interpreta a si mesma – numa câmera amadora (essas em 16:9), Donoso, junto com Videla, consegue estabelecer uma linda intimidade entre a leitora de tarô e seu espectador. Em uma completa transgressão do que lhe fora ensinado (subvertendo regras clássicas de enquadramento ou roteiro, por exemplo), a diretora inicia a desenvolver seu particular estilo, que trafega nas transficções com delicadeza e, ao mesmo tempo, apresenta linguagem crua e natural.
O mais importante para entender a mensagem transmitida pelo filme, creio eu, é a frase que a própria autora me disse (em tradução livre): “Cinema é descobrimento. Não somente pela certeza, já que tudo é muito certo no cinema, mas também pela dúvida. A dúvida é o importante”. Naomi Campbel é um filme construído a várias mãos, ecoando seu processo em sua linguagem.
Tel Aviv em Chamas – Sameh Zoabi
Num movimento inesperado da curadoria do festival, Tel Aviv em Chamas é uma comédia palestina, imensamente diferente dos já comentados documentários político-sociais. Ainda assim, não se abstrai da dimensão de comentário social na qual se instaura. Permeado de modo sutil por conflitos entre Israel e Palestina, o roteiro segue Salam, um desempregado que rapidamente se torna escritor de um grande seriado e, ao mesmo tempo, precisa lidar com um general que, enquanto o ajuda a escrever o roteiro, quer se intrometer demais nele. Simples, comum, mas eficaz. O grande mérito da obra é seu timing cômico, capaz de arrancar gargalhadas da plateia diversas vezes. Parte disso vem do texto, mas parte é realizada pela capacidade de seu elenco.
Descontraído e leve, o filme é uma opção melhor que a média de comédias para um domingo à tarde. Ainda assim, não chegou à altura dos melhores filmes da mostra Competitiva.
Nona – Se me Molham Eu os Queimo – Camila José Donoso
A cineasta chilena trouxe a Curitiba todos seus filmes a esta edição do festival. Assisti a seu debut, Naomi Campbel e ao mais recente lançamento. Radicalmente diferentes mas, ainda assim, ambos detentores do forte estilo de Donoso. Aqui, Camila acompanha sua avó num estranho misto de fantasia com um drama intimista. Josefina, a protagonista, muda-se para uma casa no interior após atear fogo num carro e, lá, não se contenta com a vida monótona enquanto, curiosamente, casas se incendeiam sem causa na região. Assim, ao contrário de seu primeiro filme, a diretora se atira no universo fílmico, trabalhando enquadramentos, eventos narrativos e poesia de maneira muito similar à empregada em ficções. No entanto, volta a trabalhar com múltiplas razões de aspecto e qualidades de imagem – o tradicional 21:9 em suas sequências explicitamente ficcionais e 4:3 em suas frações intimistas, nas quais a própria realizadora se expressa, atuando como personagem da trama.
Yermén, protagonista de Naomi Campbel, volta a interpretar uma grande amiga de Nona, que atuou em seu filme também. O longa conta, inclusive, com o brasileiro Eduardo Moscovis, que aparece rasamente. O grande problema, infelizmente, é a forma com a qual Camila Donoso constrói seu roteiro. Com pouca conexão entre as sequências e inúmeras pontas soltas, Nona – Se me Molham, Eu os Queimo se torna um filme que busca densidade sem mergulhar nela. “Pretensioso” é um adjetivo muito mal utilizado, mas chega próximo de se encaixar nessa projeção. Por mais que instigante visualmente, Nonanão desenvolve suas personagens suficientemente, a ponto de retratar um mero conjunto de eventos desconexos em tela. Por isso, torna-se entediante.