Movies

Yesterday

O consumo musical de hoje em dia é questionado com história costurada por canções dos Beatles em um mundo onde a banda não existiu

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Texto por Janaina Monteiro

Foto: Universal Pictures

Talvez um mundo sem Rolling Stones seja possível. Sem Beatles, porém, jamais. Pelo menos essa é a visão de Yesterday (Reino Unido, 2019 – Universal Pictures), filme dirigido pelo aclamado Danny Boyle, do cult Trainspotting e do oscarizado Quem Quer Ser um Milionário?, que estreia no Brasil com dois meses de delay.

Em resumo, o longa é uma bela homenagem aos Fab Four, com críticas sutis ao showbiz frente ao mundo volátil de hoje e carregando uma mensagem totalmente John Lennon no final. Quem assina o roteiro é Richard Curtis, o neozelandês naturalizado britânico especialista em comédias românticas água com açúcar como Quatro Casamentos e um Funeral Um Lugar Chamado Nothing Hill. Da dobradinha inglesa, quem se sobressai é o roteirista que imprime sua digital ao filme, abafando a direção de Boyle.

O longa conta a história de Jack Malik (interpretado pelo britânico filho de pais indianos Himesh Patel) que vive em Lowestoft, condado de Suffolk, Inglaterra, com sua vidinha de repositor num supermercado. Em paralelo, ele se apresenta em pubs e festivais, tocando as composições que compõe, às quais ninguém dá muita atenção. Pela decoração do quarto de Malik, dá pra perceber sua paixão por indie rock: há pôsteres da banda escocesa Fratellis; do álbum In Rainbows, dos ingleses do Radiohead; e dos americanos Killers. Além de cantar, Malik é multi-instrumentista (toca piano, violão e guitarra) e guarda uma supercoleção de discos de vinil dentro do armário.

Quem dá suporte à sua carreira são os amigos. Em especial Ellie Appleton (Lily James), parceira desde a infância e que se tornou uma espécie de manager de Malik. Lily é uma garota meiga e romântica, que dá aulas de matemática numa escola e, claro, nutre uma paixão platônica por Malik.  Quando, frustrado, o rapaz pensava seriamente em desistir do sonho de se tornar um cantor famoso, o inesperado acontece. Ao voltar para casa pedalando após um show praticamente às moscas, ele é atropelado por um ônibus durante um apagão planetário, como o bug que todos esperavam na virada do milênio. Jack vai parar no hospital e lá já percebe que há algo mais estranho do que ele ter ficado banguela. O rapaz cantarola trecho de uma canção dos Beatles e Ellie sequer reconhece. Ao receber alta, ganha um violão novo de presente e interpreta a canção que batiza o longa, “Yesterday”, que Paul McCartney compôs logo após lembrar-se de uma melodia vinda durante um sonho.

E então o mote do filme começa. Malik reage ao impacto de saber que é o único que se lembra de Beatles, num misto de indignação e nervosismo. Os amigos do protagonista chegam a comparar “Yesterday” com “Fix You”, do Coldplay – um dos momentos hilários do longa. O mundo, então, torna-se estranho, vazio e sem sentido para o rapaz que, por várias vezes, recorre ao Google para descobrir se algo mais desapareceu no fog. Será que o Oasis sequer existiu também?

Malik se vê na obrigação de mostrar ao mundo o que só ele lembra e, de quebra, consegue impulsionar sua carreira ao se apropriar da obra de Paul, John, George e Ringo, despertando, claro, curiosidade e desconfiança por conta de toda essa explosão criativa que surge da cabeça de quem compunha canções banais.

Conforme ele mergulha na memória para buscar cada palavra e cada acorde do repertório beatle, revela-se a trilha sonora do filme, repleta de “lados A” como “I Wanna Hold Your Hand”, “In My Life”, “Help!”, “Eleanor Rigby”, “I Saw Her Standing There”, “All You Need Is Love”, “Let It Be”, “Hey Jude”, “Here Comes The Sun” e “Ob-La Di Ob-La-Da”. Para relembrar a dificílima letra de “Eleanor Rigby”, precisa ir a Liverpool e visitar alguns lugares, por exemplo. E assim várias canções do quarteto vão dando um contorno ao filme, cada qual situada com um propósito definido.

Os “novos hits” passam a chamar atenção e Malik conhece Ed Sheeran, a grande surpresa do longa. O astro pop interpreta ele mesmo, como uma autocaricatura, um clown, e é responsável por arrancar boa parte das risadas do público (algo me diz que Sheeran teve aulas com Hugh Grant!). As obras-primas despertam também os olhares da manager de Sheeran, Debra Hammer (a comediante Kate McKinnon, que dá um show ao personificar a produtora sem escrúpulos).  De rapaz desconhecido, Malik vira ídolo pop. Alcança e conhece de perto a fama, primeiro abrindo shows do astro ruivo inglês que compôs “Shape Of You”, cujo refrão surge repetidamente no filme. Numa das cenas, os dois chegam a disputar quem faz a melhor música na hora (adivinhe quem ganha!).

A partir do momento que o protagonista começa a fazer sucesso com os hits dos Beatles – e obviamente desbanca Ed Sheeran – é possível perceber críticas implícitas sobre as mudanças sofridas na indústria do entretenimento nestas últimas décadas. Como a tecnologia transformou o processo de criação (quem é capaz de fazer uma letra como Eleanor Rigby hoje?) e facilitou o consumo de música pop requentada (porque a original Coca-Cola também desapareceu do mundo e só existe Pepsi?); e também como o marketing digital revolucionou a divulgação do trabalho dos artistas. A direção de Boyle, com seus efeitos visuais e ritmo dinâmico, nos faz mergulhar na era dos downloads, aplicativos e redes sociais e refletir sobre essas alterações tão impactantes na indústria cultural. Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band perde o colorido e “Help!” se transforma num hardcore meia boca.

O eixo principal do filme, porém, é o relacionamento entre Malik e Ellie, que fica conturbado depois que o rapaz atinge o estrelato. Mas a tensão entre o casal só vem à tona nos minutos finais. Aliás, Yesterday desanda da metade para o fim (se perde assim como a série Lost) e a expectativa de um desfecho criativo é atropelada por um ônibus biarticulado.

Mesmo assim vale assistir a Yesterday pelo tributo, pelos covers bem executados por Patel, para rir de Ed Sheeran e, sobretudo, refletir sobre o modo como consumimos cultura e amor hoje em dia. Como já diziam os Beatles, bem fresquinho na memória: “in the end the love you take is equal to the love you make”.

Music

Radiohead – ao vivo

Thom Yorke brinda o Rio tocando hino cult ao violão; em São Paulo, o evangelho da tristeza mostra que ainda emociona mas poderia ser melhor

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Textos por Natasha Durski e Fábio Soares

Fotos de Natasha Durski

Sexta-feira :: 20 de abril :: Rio de Janeiro

Nove anos de espera. Esse foi o tempo que o Radiohead, uma das maiores bandas da atualidade (embora sempre ligeiramente fora do mainstream) demorou para voltar a se apresentar em terras brasileiras. Dois álbuns após a turnê do muito bem recebido In Rainbows, a banda inglesa mostrou, em show muito mais intimista que o de 2009 (no Rio foram apenas 10 mil pessoas), a elegância das suas composições impecáveis misturando canções de seu mais novo trabalho, A Moon Shaped Pool, com pérolas sonoras do aclamadíssimo divisor de águas OK Computer e In Rainbows. Durante o show, a banda ainda perpassou por outros clássicos de sua extensa trajetória, pincelando canções de Hail To The ThiefAmnesiacKid A, The Bends e The King Of Limbs (Pablo Honey e o grande hit da banda, “Creep”, ficando de fora).

Quem conhece bem a banda sabe que, apesar da coesão entre os set lists executados durante a turnê, sempre cabe espaço para uma surpresa. No Rio de Janeiro, ela foi mais que especial: a canção “True Love Waits”, executada solo por Thom Yorke e que previamente não se encontrava no set, emocionou os fãs que cantavam todas as músicas com paixão. Até o lançamento de A Moon Shaped Pool, a música não tinha versão de estúdio e mesmo assim se tornara uma espécie de hino especial aguardado por todos que já a conheciam desde muito antes do Radiohead resolver finalmente gravá-la.

Com um show durando por volta de 2h30 e 27 músicas executadas, a banda mostrou mais uma vez ao Brasil o seu extremo nível de competência sonora – o que certamente coloca o Radiohead como uma das maiores bandas dos últimos tempos. Suas apresentações são a prova de que é possível ser grandioso e ao mesmo tempo sair dos trilhos, sem ter necessariamente que se ater ao mercado da música pura e simplesmente. São canções elaboradas e desprendidas de rótulos, feitas sob medida para um público que almeja os pontos fora da curva e se entrega totalmente aos encantos de suas melodias.

De coros apaixonados a frenesi intenso e admiração, com certeza o clima da Jeunesse Arena após o fim do concerto era de um êxtase que só uma banda do calibre do quinteto pode proporcionar. O que pode ser comprovado na última música da apresentação, “Karma Police”, cujo coro dos fãs ainda ecoava pela casa de shows minutos após os músicos deixarem o palco.

Ainda no mesmo festival, os fãs tiveram o prazer de desfrutar de duas atrações de abertura: a banda Junun, projeto de Shye Ben Tzur com o guitarrista Jonny Greenwood e Rajasthan Express, mais o DJ e produtor Steven Ellison com o nome de Flying Lotus. (ND)

Set List: “Daydreaming”, “Ful Stop”, “15 Step”, “Myxomatosis”, “Lucky”, “Nude”, “Pyramid Song”, “Everything In Its Right Place”, “Let Down “, “Bloom”, “Reckoner”, “Identikit”, “I Might Be Wrong”, “No Surprises”, “Weird Fishes/Arpeggi”, “Feral”, “Bodysnatchers”. Bis 1: “Street Spirit (Fade Out)”, “All I Need”, “Desert Island Disk”, “Lotus Flower”, “The National Anthem”, “Idioteque”. Bis 2: “True Love Waits”, “Present Tense”, “Paranoid Android” e “Karma Police”.

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Domingo :: 22 de abril :: São Paulo

Uma verdadeira “Disneylândia da tranquilidade” foram os arredores do Allianz Parque na noite do último domingo para quem (como eu) tem idade demasiada avançada para aturar um mercado de pulgas de Istambul em dias de grandes espetáculos. As ruas e bares estavam praticamente vazias nos arredores e o ambiente era tão tranquilo que adentrei o estádio somente 15 minutos antes do início da apresentação do Radiohead. Os problemas na pista comum, porém, eram evidentes: horrendos andaimes laterais atrapalhavam a visão do público e o palco estava baixo demais para quem estava na pista comum. Mas nada que abalasse a expectativa pela banda que acompanha minha geração desde a adolescência. Os tempos, porém, são outros. Se em 2009 os ingressos para o festival Just a Fest (que pela primeira vez trouxe os britânicos para cá) foram disputados a tapa, em 2018 as entradas para o SoundHearts encalharam. A organização declarou que 30 mil pessoas estavam presentes mas, sinceramente, duvido muito destes números. Pista comum cheia mas arquibancadas laterais e pista premiumcom muitos clarões era o que se via.

Com dez minutos de atraso, a banda pisou no palco do Allianz Parque com “Daydreaming”, faixa de A Moon Shaped Pool, disco de 2016 que teve fria recepção da crítica. A faixa (nada espetacular) é compensada pela emoção do público. Imagino que muitos ali presentes não estavam no show de nove anos atrás na horrenda Chácara do Jockey e encararam o show do último domingo como o “show da vida”. Neste quesito, a banda oferece o que tem de melhor: Jonny Greenwood (no alto de seus 46 anos) impressiona com sua performance no palco. Veste a capa de guitar heropara nunca mais a despir, sobretudo no refrão de “My Iron Lung”. Já Thom Yorke ainda sustenta a figura de buda midiático de uma geração depressiva e com visíveis problemas emocionais.

O set list (que jamais se repetiu nesta turnê de quase 60 shows) excluiu por completo o primogênito Pablo Honeymas transitou com coesão pelos outros oito álbuns de estúdio do grupo. “All I Need”, “Let Down”, “Weird Fishes”, “2+2=5” e, como esperado, “No Surprises” foram os pontos altos da primeira parte da apresentação. No primeiro bis, “Exit Music (For a Film)” emocionou com Yorke ao violão, sem a banda mas acompanhado por 30 mil vozes. O ponto alto, porém, foi “There There”. Minha relação com esta canção beira o amor profundo com sua indefectível batida marcial. Cantada em uníssono pela plateia foi, para mim, o ponto alto da noite. A grande decepção, para mim, foi o segundo bis: “Present Tense” poderia muito bem ser substituída por “Karma Police” que, inexplicavelmente, ficou de fora. “Paranoid Android” foi prejudicada pela má equalização do som, soando fraca e sem punch. Já a derradeira “Fake Plastic Trees”, cantada a plenos pulmões pela audiência, compensou a irregularidade pelo simples fato de sua existência. Um hino, símbolo de uma geração e que jamais perderá sua força.

Após duas horas e quinze de show, a sensação de saldo positivo era evidente mas que poderia ser melhor, também. O Radiohead 2018 soa melancólico como nunca mas o sinal de desgaste é evidente. Resta saber para qual direção o futuro da banda apontará. A única certeza que fica é que seu público continuará a segui-la como uma religião. O evangelho se perpetuará. Triste, talvez, mas continuará. (FS)

Set List: “Daydreaming”, “Ful Stop”, “15 Step”, “Myxomatosis”, “You And Whose Army?”, “All I Need”, “Pyramid Song”, “Everything In Its Right Place”, “Let Down “, “Bloom”, “The Numbers”, “My Iron Lung”, “The Gloaming”, “No Surprises”, “Weird Fishes/Arpeggi”, “2+2=5”, “Idioteque”. Bis 1: “Exit Music (For a Film)”, “Nude”, “Identikit”, “There There”, “Lotus Flower”, “Bodysnatchers”. Bis 2: “Present Tense”, “Paranoid Android” e “Fake Plastic Trees”.