festival, Music

Coolritiba 2023 – ao vivo

Gilberto Gil, Marisa Monte, Mano Brown, Alceu Valença, Fresno, Liniker e outros bons shows

Gilberto Gil

Texto por Leonardo Andreiko e Luca Passos (com colaboração de Otto Browne)

Fotos: Coolritiba/Divulgação

No último dia 20 de maio, em pleno outono curitibano, 23 atrações musicais dividiram quatro palcos distribuídos entre a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Arame em mais uma edição do festival Coolritiba, que agitou no frio e no calor de um sábado com mais de 12 horas de música. Foram 12 shows principais nos palcos-irmãos da Pedreira, além da música eletrônica ocupando o palco da Ópera e o caminho entre eles.

Com a missão de abrir o dia no Palco A, Tuyo mostrou a que veio com as nuances eletrônicas de seu pop alternativo ancorado nas belíssimas e potentes vozes das irmãs Lio e Lay Soares – Jean Machado completa o trio com a produção eletrônica e as modulações de guitarra e baixo. As baladas melancólicas da banda curitibana arrepiaram quem chegou cedo para curtir o festival e incumbiram a próxima atração, Agnes Nunes, com a difícil missão de manter os ânimos. E assim ela o fez.

Baiana de apenas 21 anos e uma multidão de seguidores nas redes sociais, Agnes trouxe para o meio-dia de Curitiba seu som fortemente influenciado pelo r&b norte-americano, mas com pegada inequivocamente brasileira. Acompanhada por um pianista e um baixista/guitarrista no Palco B, encantou com sua voz, pôs o público para cantar e deu espaço para os instrumentais românticos de sua ainda incipiente discografia.

Liniker

Em seguida, Liniker trouxe seu álbum Indigo Borboleta Anil para os palcos junto de músicos estelares, com quem dividiu o protagonismo a todo momento. Do início ao fim de sua apresentação, mandou hits consagrados no meio indie brasileiro e novas apostas musicais, que a colocam em evidência como uma das maiores artistas em ascensão do país. Com “Intimidade”, “Baby 95” e outras canções, a artista foi mais uma das atrações que preencheu a Pedreira com presença vocal surpreendente. Ela embalou toda a plateia, agora já encorpada, com uma banda que nada deve às melhores do funk e do r&b mundial, sem deixar de incorporar brasilidade e samba para a equação. Bateria, percussão e baixo montaram uma cozinha espetacular, que dividiu o palco com teclados, guitarra e um naipe de sopros digno das big bands. Liniker provou que a veremos, mais cedo do que imaginávamos, protagonizar festivais como headliner.

Depois de uma das mais promissoras novas vozes da música brasileira foi a vez de um de nossos maiores patrimônios tomar o microfone. Encaixado em um horário que não faz jus a sua história, Alceu Valença subiu ao Palco B da Pedreira às 14h30 para levar a um público majoritariamente jovem sua sonoridade profundamente brasileira. Ainda que as interações com a plateia não estivessem com tamanha energia, o bom humor e a irreverência do pernambucano colocaram Curitiba para dançar e cantar “Tropicana”, “La Belle de Jour”, “Anunciação” e “Táxi Lunar”. Sua apresentação, ladeada por novas promessas e tendências fonográficas, foi um instigante ponto de toque para se refletir acerca das distâncias e proximidades entre o passado, o presente e o futuro da MPB.

Fresno

O Fresno, que sucedeu Alceu, ocupa um espaço particular nessa conjuntura temporal. Apresentando uma versão reduzida de sua turnê mais recente, que acompanha o álbum Vou Ter Que Me Virar, os gaúcho-paulistas teceram um set list que conjuga os sucessos emo da primeira metade de seus 24 anos de carreira com a refinada estética construída nos últimos projetos, que agregam elementos do synth pop e demais vertentes eletrônicas a uma gutural e crua herança do hardcore.

O show do grupo ostentou, junto à posterior presença agigantada de Mano Brown, o tom mais político desse festival. Entre os fortes riffs de “FUDEU!!!”, o vocalista Lucas Silveira comemorou a cassação do ex-deputado federal da Lava-Jato com um grito de “Deltan, tu se f*deu!”. Ainda, os versos “E o prеsidente, basicamente/ Quer te exterminar” foram acompanhados da projeção “ex-presidente” no telão, que complementa e cria a atmosfera de toda a apresentação da banda. Em “Eles Odeiam Gente Como Nós”, projetavam-se as silhuetas da pífia demonstração de força do Exército Brasileiro durante o desgoverno militarista de Bolsonaro.

Em seguida, o Lagum, banda de pop rock com uma influência de reggae que acaba de lançar o quarto disco, Depois do Fim, entregou-se nas interpretações de suas músicas, cativando o público forte interação. Além de prometer voltar para outro show na cidade até o fim do ano, os mineiros brindaram os fãs mais assíduos com uma palhinha de uma música vindoura.

Agnes Nunes

Embora o baiano Teto e o cearense Matuê sejam parceiros de muitas composições e constassem juntos na programação (como parte de sua turnê em conjunto), eles não dividiram o palco em nenhum momento. No entanto, ambas as aparições animaram o público com suas potentes presenças de palco e sucessos mais recentes (do primeiro, “Flow Spacial”; do outro, “Conexões da Máfia”), além de seus maiores hits. Fizeram a alegria dos fãs que compareceram em peso no festival.

Se o trap de Matuê o faz um dos artistas em maior evidência do país, o palco de seu show catapulta a experiência àquela dos grandes performers mundiais, com luzes e um telão que ostenta animações psicodélicas que expandem a toada estética iniciada no álbum Máquina do Tempo, de 2020. A última música do set, “777-666”, seu píncaro artístico, entregou a exata atmosfera do artista: os dois acompanhantes, guitarrista e tecladista (que, inclusive, surpreendeu com um solo que parecia saído dos álbuns contemporâneos de jazz), juntaram-se num palco “em chamas”, efetuando solos com seus instrumentos já quase inaudíveis pela batida da música. Deliberadamente tosco, um jeito perfeito de terminar.

Em seguida, L7nnon deu sequência coerente aos artistas anteriores. Um dos nomes mais evidentes do rap nacional, suas músicas, já conhecidas por boa parte do público, cativaram a juventude que o esperava – a despeito de uma possível qualidade da interpretação, que não passou do mais básico. Dificilmente alguém que não o conhecia – justamente uma das qualidades do formato do festival, o contato com o choque entre gêneros e carreiras – foi atraído pelas canções, com a notável exceção de “Ai Preto”, não à toa seu maior sucesso.

Mano Brown

Um dos destaques do festival neste ano foi o veterano Mano Brown, que nos brindou com o que pode ser considerado um concerto duplo. Os primeiros 20 minutos foram dedicados a canções de seu álbum solo lançado em 2016, Boogie Naipe. As composições, executadas com o cantor Lino Kriss, deram boas-vindas calorosas ao som do boogie e do r&b. No telão, uma miscelânea de capas de álbuns clássicos dos gêneros que inspiraram o álbum: um convite a explorar a história musical que claramente encanta Brown desde os primórdios. Curitiba dançou “dois pra cá, um pra lá” contagiada com os ritmos dançantes de músicas como “Gangsta Boogie” e “Mal de Amor”.

Na segunda parte do espetáculo, a plateia foi presenteada com hinos do clássico álbum de 2002 dos Racionais MCs, Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, interpretadas no sentido mais puro da palavra: o palco, decorado de forma quase minimalista, foi usado à exaustão para dar forma aos versos. Com as gigantescas presenças de Ice Blue e KL Jay, músicas que já integram o substrato mais profundo da cultura brasileira foram entregues com suas forças sempre vivas: “Vida Loka (Parte I)”, “Eu Sou 157” e “Jesus Chorou” foram algumas pedradas que rolaram em som na noite. Aliás, é necessário um contraste entre a apresentação de Brown, de 53 anos, com os rappers da nova geração: o único que levou dançarinos e intérpretes de libras, Mano, em certo momento, brincou com o fato de ainda estar antenado, mas de um modo meio duvidoso. Talvez seja justamente por esse anacronismo que ainda se pode falar de arte, que os corpos ainda se movimentam no espaço e que as palavras sobrevivem.

Sandy

Dez minutos depois, Sandy entrou no palco ao lado, numa produção grandiosa em seu trabalho de luzes e da própria sonoridade. A cantora, que parece ser incapaz de sair da afinação, evidentemente não parecia afinada à programação: apertada entre Mano Brown e Gilberto Gil, sua presença foi um pouco anódina. Foi um show voltado a fãs da cantora, que interagiram bastante com o público e cantaram seus grandes sucessos, como “Aquela dos 30” e “Me Espera”, em parceria com Tiago Iorc. Ainda assim, a música que mais fez vibrar os curitibanos foi um dos sucessos dela com o irmão, Júnior: “A Lenda”, num soturno exemplo que pode resumir a carreira da cantora.

Em seguida, um dos protagonistas da noite: Gilberto Gil, 80 anos e com sua banda, ofereceu um dos mais destacados espetáculos do Coolritiba, com uma sequência de músicas de seu repertório próximas da sonoridade do forró entrecortadas por interlúdios  quase industriais. Ninguém ficou parado ou calado na plateia: de crianças a senhoras, todos cantavam a plenos pulmões (ok, havia alguns mais comedidos, aqueles cuja vergonha ataca mesmo nessas ocasiões) músicas como “Eu Só Quero Um Xodó”, “Toda Menina Baiana” e “Esotérico”. A movimentação, preenchida pela harmonia com as notas, não foi exclusiva da plateia, já que em cima do palco toda a banda parecia estar em enorme entrosamento, rendendo sobretudo bons solos de guitarra e sanfona, esta nas mãos do ilustre Mestrinho. Vale o destaque à filha mais velha de Gil, Nara Gil, que acompanhou o acordeonista nos vocais.

Alceu Valença

Uma das coisas que mais indicam a qualidade de um show é a interação entre o público e o artista – tanto entre as músicas quanto durante elas. Gil falou de tudo um pouco sobre a capital paranaense: citou os times de futebol, o quentão e o frio. Essa proximidade com a cidade rendeu uma das partes mais bonitas do espetáculo: a homenagem para a filha mais nova de Paulo Leminski e Alice Ruiz, “Estrela”. O concerto de Gil, portanto, foi à altura de seu nome gigantesco, uma pequena janela de paraíso musical.

Para fechar a noite, Marisa Monte vestiu-se de deusa e trouxe a Curitiba um espetáculo não apenas musical como também visual. Seu telão com projeções em 3D criaram uma espacialidade magnânima onde a voz de Marisa pudesse ecoar, acompanhada de uma banda de dar inveja a qualquer artista nacional. Conduzindo os sopros, o trompetista Antônio Neves, que ostenta um dos melhores lançamentos brasileiros do jazz contemporâneo, levou a especial textura que torna sucessos como “Ainda Bem” tão especiais na discografia de Marisa.

A cantora também presenteou as plateias com hits da carreira, como “Vilarejo”, “Beija Eu” e “Velha Infância”. O show ainda contou com a presença do percussionista Pretinho da Serrinha, que dividiu o palco com a estrela para apresentar a colaboração dos dois, em homenagem à Portela, chamada “Elegante Amanhecer”.

Marisa Monte

Assim se encerrou mais uma edição do Coolritiba, que faz aterrissar no Paraná a megaestrutura dos grandes festivais, mas também traz consigo seus problemas. É impossível ignorar as reclamações com os preços abusivos e a falta de transparência em relação à promessa de água e ônibus gratuitos, assim como é impossível ignorar a qualidade do aparelho cultural disposto à cidade, ainda que com a mácula da inacessibilidade.

Music

Gilberto Gil – ao vivo

Por que, aos 80 anos, ele é o artista mais necessário da música brasileira nestes tensos, conturbados e delicados tempos vividos no país

Texto por Abonico Smith

Foro: Priscila Oliveira (CWB Live)

“Tudo que tem um começo também tem um fim”. Assim disse Gilberto Gil um pouco depois de iniciado seu segundo concerto em Curitiba, onde esteve tocando nos últimos dias 27 e 28 de outubro. Logo depois, regeu o primeiro de quatro coros com o nome de Lula entoados pela plateia. Não era mais preciso muita coisa para se ter uma certeza naquela noite: o cantor e compositor baiano é o artista certo e na hora certa, o principal nome da música brasileira para representar e personificar, através de palavras, letras, melodias e harmonias o momento extremamente delicado que o país viveu nestes últimos dias de outubro.

Gil completou oito décadas de idade em 26 de julho. Está em plena vitalidade fisica, cantando (mesmo estando com a voz um tanto rouca desse dia na capital paranaense) e dançando com plena desenvoltura, empunhando e tocando sua guitarra no palco do Teatro Positivo. Tanto que nos últimos meses fez uma turnê de quinze datas por cidades europeias e ainda se apresentou em três conceituados festivais nacionais (Coala, MITA, Rock in Rio). Em todos os shows trazendo alguns familiares (filhos, netos) para integrar a sua banda de apoio. Também veio à capital paranaense para iniciar uma série de apresentações por cidades nacionais com a turnê Gil 80 Anos. Sorte nossa, sorte de quem estava na plateia – inclusive trinta convidados que representavam o MST em cada noite. Como visto recentemente no reality show Em Casa com os Gil, disponível para streaming na Amazon Prime, Gil é aquele avô carinhoso, amável, que desperta não só encantamento em quem está por perto com ainda provoca aquela sensação de calma e bem-estar em decorrência de seus conselhos, comentários e tudo aquilo que diz de maneira curta e rápida.

Foi assim no Positivo durante cerca de uma hora e meia de apresentação. Volta e meia, fosse no intervalo entre as canções ou mesmo durante elas (através de versos certeiros). Começou com as estrofes e refrão de “Tempo Rei”: “Água mole, pedra dura/ Tanto bate que não restará nem pensamento/ Tempo rei, ó tempo rei, ó tempo rei/ Transformai as velhas formas do viver/ […] Mães zelosas, pais corujas/ Vejam como as águas de repente ficam sujas/ Não se iludam, não me iludo/ Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”. Na terceira música, unindo sua versão em português e o original em inglês de Bob Marley, decretou em “Não Chores Mais” que “Se Deus quiser/ Tudo, tudo, tudo vai dar pé”.

Mais pro miolo do set iniciou uma série de canções mais lentas. Menos dançantes e um pouco mais reflexivas. “Mais suaves”, como declarou ao microfone. Contudo, a suavidade também desconcerta. Mesmo passados quarenta anos é impossível não se emocionar com “Drão” (“O amor da gente é como um grão/ Uma semente de ilusão/ Tem que morrer pra germinar/ Plantar em algum lugar/ Ressuscitar no chão nossa semeadura”). Para Gil, esta é “uma canção da crença e da fé absoluta no amor eterno”. OK, ela foi composta em um momento de bastante intimidade, o da separação do cantor e da sua então esposa Sandra Gadelha (mãe de Preta, Maria e o falecido Pedro). Contudo, pode servir também em um espectro mais abrangente, com uma leitura mais pro macro voltada ao nosso tão sofrido dia a dia do país, repleto de imoralidades e absurdos que serviram como morte para o nosso amor e a nossa fé.

Antes de iniciar “A Paz”, Gil prossegue com seus ensinamentos: “ela fala sobre a revitalização da vida que se contrapõe a tudo o que tenta destruí-la. “Já para anunciar “Estrela”, recorre a lembranças pessoais e confidencia ao público ter composto os versos inspirado por “uma menina” da cidade que “viu” nascer. No caso, Estrela, a filha mais nova de seu amigo Paulo Leminski. “Éramos jovens e andávamos de noite pelas ruas de Curitiba eu, Paulo e Helinho [Pimentel, fundador da mítica rádio Estação Primeira e hoje administrador do complexo que envolve os palcos e as áreas para entretenimento da Ópera de Arame e da Pedreira… Paulo Leminski!]. Eu vi esta menina nascer e então esta música tem uma semente curitibana”.

Só que Gil impacta ainda por aquilo que não diz, mas também pelo que está implícito em suas músicas. Na primeira parte do concerto, por exemplo, lançou mão de uma sequência de poderosas canções nordestinas. A intenção ali não era apenas saudar a rica cultura musical da região brasileira da qual veio e relembrar um pouco de gêneros que lhe exerceram fascínio e influência desde cedo, como o xote, o baião e o forró. Também era um recado sobre a fortaleza daquele povo um tanto sofrido mas que não só nunca se entrega como também faz valer a sua voz e a sua (força de) vontade. Que elege um presidente que o representa e diz um sonoro não a outro que o despreza. Como dizia Luiz Gonzaga, a ordem agora é “já ir” respeitando os oito baixos!

Ainda tendo como referência seu DNA nordestino, neste show ele voltou a lembrar os tempos de Tropicália e promover assombrosas fusões musicais com gêneros de além-fronteira. No trecho com “Esperando na Janela”, “respeita Januário”, “O Xote das Meninas” e “Eu Só Quero um Xodó” os clássicos surgem emendados por um mesmo padrão de percussão eletrônica. Mestrinho, sanfoneiro e backing de sua banda, abrilhanta os arranjos de reggae de “Não Chores Mais”/“No Woman No Cry” e “Esotérico” com um refinado lamento extraído de seu acordeon. “Realce” e “Palco”, quase meio século depois, ainda arrastam todo mundo para dançar fora de suas cadeiras com a batida disco mesclada à fusão entre rock, jazz e sintetizadores). Por falar em rock, na hora de relembrar com muito peso “Get Back” (devidamente colada à versão em português “De Leve”, assinada e gravada em disco ao vivo de 1977 por Gil e Rita Lee, durante provocativa turnê conjunta para “relançar” ambas as carreiras meses depois de ambos serem detidos por porte de drogas) mostrou o quanto os Beatles foram decisivos na sua carreira.

À parte final do repertório não foram reservados apenas alguns clássicos infalíveis como “Aquele Abraço” (alô, torcida do tricampeão Flamengo!), “Andar com Fé” e “Toda Menina Baiana”. Teve espaço também mais reflexões provocativas de Gil. “Nos Barracos da Cidade” discute sem papas na língua a hipocrisia e a estupidez dos políticos governantes de nosso país (e que em certos casos chegam a “confundir”, na maldade, moradores da favela com ladrões). “Punk da Periferia” é uma ode a tudo aquilo que, embora considerado nojento e fora dos padrões do centrão, confronta o status quo das elites de nossa sociedade. Não à toa, naquela sexta-feira, um monte de gente curitibana, de bem e bem vestida, reagiu com indignação à execução da mesma se levantando das cadeiras e se dirigindo para fora do teatro mesmo antes do fim do espetáculo.

Gil também retomou nesta parte o mode on sabedoria infinita do alto de seus 80 anos de vida. Repetiu várias vezes que devemos “andar com fé porque a fé não costuma falhar”. A poucas horas da eleição mais importante, versos como estes mostraram-se mais do que reconfortantes para quem nunca deixou de crer que o amanhã será um lindo dia da mais louca alegria.

Por fim deu ainda para incendiar mais um pouco a plateia terminados os acordes e batidas na derradeira canção do set list. O eterno doce bárbaro desejou a todos de Curitiba, terra da lava jato e com altíssima adesão bolsonarista, uma “explosiva eleição”. E saiu do palco fazendo com as mãos o sinal do L. Nem foi preciso ter bis do artista mais do que necessário para este nosso conturbado ano de 2022. O concerto todo, extenso, com 21 canções e muitos códigos cifrados em discursos cantados, falados e mostrados, deixou toda aquela noite, às vésperas de toda a tensão no ar da semana anterior ao domingo de votação do segundo turno da mais importante eleição presidencial da História do Brasil, nada mais do que histórica. E confortável.

Set list: “Tempo Rei”, “A Novidade”, “Não Chores Mais”/”No Woman No Cry”, “Vamos Fugir”, “Esperando na Janela”, “Respeita Januário”, “O Xote das Meninas”, “Eu Só Quero um Xodó”, “Drão”, “A Paz”, “Estrela”, “Esotérico”, “Palco”, “Aquele Abraço”, “Andar Com Fé”, “De Leve”/”Get Back”, “Nos Barracos da Cidade”, “Realce” “Punk da Periferia”, “Maracatu Atômico” e “Toda Menina Baiana”. 

Music

Escambau

Criador da banda curitibana fala sobre o relançamento do álbum de estreia com dez faixas-bônus gravadas em 2007 no Paraguai e relembra o período

giovannicaruso2007paraguaipier

Texto por Abonico R. Smith a partir de depoimento de Giovanni Caruso

Fotos: Acervo Escambau

Em abril de 2007, depois de atuar dez anos à frente dos Faichecleres, sem muito explicar ele abandonou a banda que ajudou a fundar. No auge da carreira, fez as malas e se isolou durante quatro meses no interior do Paraguay. A cidade de San Bernardino, adornada pelo famoso Lago Azul de Ypacaraí, está localizada a cerca de 50 km ao sul da capital, Asunción. “O pequeno povoado é muito procurado no verão como destino de férias. Por outro lado, o misterioso balneário vira do avesso no inverno, tornando-se um local completamente silencioso, pacato e vazio. Um cenário perfeito para criar, meditar e também pra fazer filmes de terror. É uma cidade fantasma!”, conta Giovanni Caruso.

Nestas condições, foram idealizadas e gravadas em formato de demo As Gloriosas Esferas do Inconcebível Esplendor. Este é um conjunto de dez faixas registradas com vozes e violões, guitarras, baixos, percussões e até arranjos de sopro modulados em um antigo teclado. Tudo gravado por Giovanni e da maneira mais simples possível: com um velho microfone Shure SM58 e todos os instrumentos ligados em linha, plugados diretamente numa antiga mesa Yamaha de quatro canais. “Queria reciclar meu trabalho. Montar uma nova banda. Pra isso, precisava de material. Aproveitei meu autoexílio para isso. Compor, gravar, meditar. Enfim, reorganizar minha vida. Pra mim, de certa forma, era uma emergência. Queria voltar ao Brasil com algo encaminhado debaixo dos braços, trazendo algo sólido para buscar novos parceiros e cair na estrada para tocar novamente.”

De volta a Curitiba, no final daquele ano, fora surpreendido por uma notícia que teria forte impacto na sua vida. Maria Paraguaya, sua companheira havia pouco mais de dois anos e que em breve viria a integrar a formação original do Escambau, estava grávida. A gestação acabou retardando um pouco os planos de lançar o novo projeto ainda no ano de 2008. Neste ínterim, ainda sem banda, decidiu entrar em estúdio para valer e, com a colaboração técnica de Rodrigo Barros e Luiz Ferreira, ambos ex-integrantes da banda Beijo Aa Força, fazer um registro mais profissional das novas canções. Na bateria, teve o apoio mais do que bem-vindo do irmão Glauco Caruso. “Que, por sua vez, fez um excelente e marcante trabalho, diga-se de passagem, e que, aliás, entre outras joias, trazia em seu currículo as assombrosas baterias do álbum A Sétima Efervescência, do cultuado músico gaúcho Júpiter Maçã”, adiciona. O organista Moacyr Boff completou o time, temperando com seu virtuosismo e indefectível acento bluesy a estrutura vertebral do álbum. Enquanto isso, todos os outros instrumentos ficariam sob a sua responsabilidade.

Maria Paraguaya, Adriano Antunes (Syd Vinicius) e Oneide Diedrich (Pelebroi Não Sei) acrescentaram vocais no hit “Dos Amores Mais Vendidos”, que, pouco tempo depois, ganharia um videoclipe premiado em dois festivais nacionais. O disco ainda contou com a participação de Raul de Nadal em “A Prostituta Apaixonada”, tocando acordeon, e de um ótimo e bem arranjado naipe de sopros na canção “Kallandra’s Bar”. Faixas como “Desparafuso”, “Mônica e Suas Esculturas” e “Amor em Si Bemol” logo deixaram fortes impressões nos seguidores da banda e, ainda nos dias de hoje, são muito requisitadas nas apresentações.

escambau capa acontece

Exatamente na virada para 2009, para a alegria dos fãs, o álbum Acontece nas Melhores Famílias foi disponibilizado gratuitamente na internet através da plataforma MySpace. A banda, já com formação definida e chamada Giovanni Caruso e o Escambau, estreou com casa lotada no dia 13 de março. Além de Giovanni, no baixo e nos vocais, estavam Maria Paraguaya, vozes e percussão; Moacyr Boff, teclados; Zo Escambau, guitarra; e Ivan Rodrigues, bateria. De lá pra cá, se vão dez anos, cinco discos, mudanças de nome e formação, shows pelo Brasil e exterior e vários videoclipes. Em 2019, para comemorar a simbólica data, o Escambau (que hoje conta com Caruso, Paraguaya, Zo, Yan Lemos no baixo e Yuri Vasselai na bateria) promete começar o ano com um explosivo lançamento que irá chacoalhar as estruturas de um carente e malfadado rock tupiniquim dos tempos atuais.

“Nosso sexto álbum já está pronto e foi gravado integralmente e ininterruptamente durante cinco dias, entre o fim de outubro e começo de novembro, dentro de uma locação do século XVIII, nas acomodações do luxuoso Hotel Camboa, na cidade histórica paranaense de Antonina”. Ainda em virtude da simbólica data comemorativa, o Escambau promete disponibilizar – o mais breve possível – todos os seus álbuns acrescidos de faixas-bônus e demo tapes inéditas nas principais plataformas de streaming. Agora é esperar para ouvir e deliciar-se, enquanto isso, com os raros sabores de um disco gravado e lançado antes da existência da própria banda.

Estranho isso, né? Pensando assim, permito-me imaginar que a alma do Escambau se encontra aqui. Neste primeiro sopro criativo intitulado Acontece nas Melhores Famílias. Nesta edição comemorativa, que se chama 10 Anos do Lançamento, conta ainda com dez faixas-bônus. Afinal são outtakes da pré-produção do álbum realizada em 2007 no Paraguay, onde o disco fora pré-concebido sob a curiosa alcunha de As Gloriosas Esferas do Inconcebível Esplendor.

>> Escute Acontece nas Melhores Famílias – 10 Anos do Lançamento nas plataformas iTunesSpotify e Deezer. O CD também pode ser comprado pela Tratore.

giovannicaruso2007paraguaicruzes

Music

Flogging Molly – ao vivo

É impossível não sair feliz de um show que mistura punk, folk, polca e música celta mais a sabedoria de um velho e festeiro irlandês bêbado

floggingmollly2018cwb

Texto e foto por Abonico R. Smith

É só juntar cerveja e música para um irlandês que não tem erro: a noite é sinônimo de festa e diversão. Ainda mais se esse irlandês for o frontman de uma banda de mistura veia punk old school, batida de polca e elementos da música celta. Está aí a receita de sucesso de todo e qualquer show do Flogging Molly, banda norte-americana que acaba de passar mais uma vez pelo Brasil.

O show em Curitiba, na sexta 5 de outubro, foi o primeiro de três apresentações marcadas para o final de semana do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. O que se viu no Hermes Bar nem de longe refletia a polarização de opostos que predomina nas ruas e redes sociais de todo o país. Pelo contrário. Dentro da casa o clima era de pura confraternização sob o comando do irrequieto Dave King, o tal do ruivo irlandês, que já sobe ao palco segurando uma lata de cerveja. A partir da primeira música fica impossível não se sentir magnetizado por ele. Por mais que a performance de outros músicos pedisse atenção – especialmente a do acordeonista Matt Hensley, o aniversariante do dia, que se mexe o tempo inteiro em poses e mais poses com seu instrumento – King monopoliza os olhos da plateia. Faz chifrinhos com os dedos colados na testa, oferece latas para os fãs do gargarejo, ensaia um duckwalk com seu violão, fala sem parar antes de cada música e estabelece uma sintonia imensa com a plateia como um mestre de cerimônia deve fazer. Já na segunda canção, pede para todo mundo bater palmas em acompanhamento, é atendido de prontidão e ganha a noite para todo o resto.

O Flogging Molly é uma espécie de grupo punk de sucesso às avessas. Nunca teve um hitestourado nas paradas, não toca nem nas rádios rock brasileiras, tem um violão dando uma base folk a todas as canções e começou a trajetória quando seu líder e fundador já havia passado dos 30 anos de idade e cantado em um grupo heavy metal, com Eddie Clarke, guitarrista da formação clássica do Motörhead. Entretanto, carrega seu séquito particular de fãs onde quer que passe. Em Curitiba, tocando pela primeira vez, não foi diferente. Volta e meia passava alguém pela pista com uma camiseta de turnês anteriores e o número de gente que cantava de cor música após música era impressionante – inclusive pessoas cujo visual nunca entregaria serem elas fanáticas por punk rock.

King e sua banda divertem pela estranheza e bizarrice. Os multiinstrumentistas Bridget Regan (rabeca, violino, flauta) e Bob Schmidt (Banjo, bandolim) já dão um molho de timbres e escalas celtas todo especial aos arranjos. As letras enormes de King falam de coisas tão díspares quanto um lendário campeão de boxe sem o uso de luvas ou a colonização inicial do México ou ainda a adolescência sofrida vivida em um bairro residencial de classe média baixa na Irlanda. De vez em quando ele ainda acrescenta enxertos curiosos de músicas que você nunca esperaria ouvir o vocalista cantar em um show de punk rock, como “Freedom” (George Michael), “Respect” (Aretha Franklin), “We Will Rock” (Queen) e “Sunday Bloody Sunday”(U2).

Dividindo a base do set list entre os dois primeiros álbuns e o mais recente (Life Is Good, lançado em 2017, após um intervalo de seis anos), King literalmente deitou e rolou frente aos curitibanos extasiados com sua performance incontrolável. Para completar, mal terminou o bis e o cara foi o único da banda a não querer deixar o palco. Segurando outra latinha de Guinness (claro!), ele ficou solitário ao microfone ainda ligado, dançando desengonçadamente, assoviando e cantando junto com a gravação de “Always Look On The Bright Side Of Life”, do Monty Python, estrategicamente programada para ser tocada logo após a última canção tocada pela banda em todos os shows.

Naquela altura, Dave endossava comediante, roteirista, ator e compositor da canção Eric Idle, um dos seis integrantes do histórico grupo inglês de humor. “Algumas coisas na vida são ruins/ Isso pode realmente te deixar louco/ Outras coisas só fazem você xingar e amaldiçoar/ Quando você está mastigando a cartilagem da vida/ Não resmungue, dê um assovio/ Isso vai ajudar as coisas a darem o melhor/ E sempre olhe para o lado positivo da vida/ Sempre olhe para o lado da luz da vida” é o que dizem os versos iniciais da música de encerramento do longa-metragem A Vida de Brian. E quem somos nós para duvidar da sabedoria de um velho e festeiro irlandês bêbado?

Set list: “(No More) Paddy’s Lament”, “The Hand Of John Sullivan”, “Drunken Lullabies”, “The Likes Of You Again”, “Swagger”, “The Days We’ve Yet To Meet”, “Requiem For a Dying Song”, “Life In a Tenement Square”, “Float”, “The Spoken Wheel”, “Black Friday Rule”, “Life Is Good”, “Rebels Of The Sacred Heart”, “Devil’s Dance Floor”, “If I Ever Leave This World Alone”, “What’s Left Of The Flag”e “Seven Deadly Sins”. Bis: “Crushed (Hostile Nations)” e “Salty Dog”.

Music

Flogging Molly

Oito motivos para não perder o empolgante show do septeto americano-irlandês que mistura punk com música celta

flogging molly

Texto por Abonico R. Smith

Foto: Divulgação

Sete shows em nove dias em cinco países. Esta é a agenda de Dave King e seu grupo Flogging Molly pela América Latina na primeira quinzena de outubro. A primeira parada é no Brasil, com datas marcadas para Curitiba (5), São Paulo (6) e Rio Janeiro (7) – veja mais informações sobre estas três noites aqui. Depois, a banda parte para Buenos Aires (9), Santiago (10), Bogotá (12) e, por fim, Cidade do México (14).  Abaixo, o Mondo Bacana lista oito motivos para você não perder alguma destas apresentações.

Carreira equilibrada

O Flogging Molly comemorou vinte anos de carreira no ano passado com uma discografia equilibradamente espaça de seis discos lançados entre 2000 e 2017. O maior intervalo de tempo ocorreu entre os dos últimos (seis anos). O que comprova que disco só sai quando a banda realmente tem um punhado de material novo nas mãos

The Hand Of John L. Sullivan

Meses antes de lançar o álbum mais recente, Life Is Good (2017), o Flogging Molly disponibilizou o single  “The Hand Of John L. Sullivan”, um divertido punk celta que homenageia o lendário boxeador americano (de origem irlandesa, claro) John L. Sullivan, o último dos campeões da categoria pesos-pesados dos ringues antes da regra que impôs a obrigatoriedade do uso de luvas aos esportistas. Também, claro, foi o primeiro campeão da mesma categoria, após o uso das luvas, em 1882.

Crushed (Hostile Nations)

Apesar de não ter sido lançada em single, esta faixa de Life Is Good funciona tão bem ao vivo que está incluída no repertório da atual turnê, chamada Liberarion Tour Booking. O refrão é explosivo, a bateria de marcha no tarol envolve todo mundo e a letra antiguerra é sensacional.

The Days We’ve Yet To Meet

Punk irlandês pode ser beberrão e não fugir a uma boa briga, mas também não tem a mínima vergonha de se mostrar um eterno romântico. A letra desta faixa, também do novo disco, é um primor de nostalgia apaixonada. Fala sobre o relacionamento ingênuo e inocente de um casal na adolescência e como a ligaçãoo foi se perdendo com o tempo. Corre o risco de fazer quem tem coração amanteigado chorar quando tocada ao vivo

Ligação com o Motörhead

Eddie Clark, guitarrista da formação clássicao Motörhead falecido no último mês de janeiro, formou uma banda de hard rock chamada Fastway em 1983, um ano depois de sair do trio liderada por Lemmy Kilmister. Sabe quem ele chamou para ser o vocalista da nova empreitada? Um jovem irlandês chamado Dave King (o frontman ruivo de barba, à frente dos músicos na foto acima), então com apenas 22 anos de idade. King gravou um álbum por ano até 1986, até abandonar o barco para se dedicar a outro projeto, o Katmandu, que fez um disco só e não emplacou.

Um-dois

Não tem nada mais excitante para fazer pogo e wrecklingdo que a tradicional batida da polca, o tal do compasso binário que casa tão bem com o psychobilly, ritmo que encontrou casa abrigo e gerações dispostas a perpetuá-lo tanto em Curitiba quanto em São Paulo. Portanto, o público destas duas cidades estará mais do habituado quando o baterista Mike Alonso – recém-integrado à turma – soltar mão e pés no seu kit.

Velhos hits

O repertório da Liberation Tour Book serve para divulgar o novo disco mas também não deixa de lado os vários clássicos que fizeram a alegria dos fãs da Flogging Molly na década passada. Só para ter uma ideia, Mais da metade do repertório vem dos dois primeiros álbuns, Swagger (2000) e Drunken Lullabies (2002). Seria um desperdício deixar de tocar canções como “If I Ever Leave This World Alive, “Salty Dog”, “Drunken Lulabies” e “What’s Left Of The Flag” até hoje.

Punk celta

Se separadamente estes dois gêneros musicais não conseguem deixar nenhum fã parado durante os show, imagina juntando tudo isso. O Flogging Molly, que sempre mostrou-se orgulhoso de seu sangue irlandês, usa ao vivo banjo, flauta doce, bandolim, rabeca e acordeon ao lado da instrumentação tradicional do punk rock. Não à tôa, nos últimos três anos participou de cruzeiros ao lado de gente como DeVotchKa, Gogol Bordello, Frank Turner, Buzzcocks, Offspring, Skatalites, Beat, Rancid e NoFX.