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Dias Perfeitos

Wim Wenders louva Yasujiro Ozu com um longa rodado em Tóquio, no idioma japonês e mostrando os encantos da rotina

Texto por Abonico Smith

Foto: O2/Mubi/Divulgação

Komorebi é um termo da língua japonesa que significa a cintilância entre luz e sombra provocada quando as folhas das árvores balançam com o vento. Esta é uma experiência única, que ocorre somente uma vez, naquele determinado momento. Podem as mesmas folhas se mexerem de novo, mas o resultado será sempre diferente.

Esta fascinante expressão idiomática ganha explicação em uma breve cena que toma a tela depois de todos os créditos de Dias Perfeitos (Perfect Days, Kapão/Alemanha, 2023 – O2/Mubi), filme que recolocou o nome do diretor e roteirista Wim Wenders em evidência no panorama internacional depois de quase duas décadas apresentando uma série de produções ficcionais bem marromeno perante a sua cinematografia clássica (Submersão, Tudo Vai Ficar Bem, Os Belos Dias de Aranjuez, Palermo Shooting), documentários (Pina, Sebastião Salgado, papa Francisco) e mais alguns curtas e vídeos musicais. Tanto que o alemão arrebatou indicações para importantes premiações como o Oscar, o Cesar e a Palma de Ouro. E Wenders possui um fascínio tão grande pela imagem que “homenageou” a palavra com um filme delicado e singelo, que retoma a qualidade de seu cinema de alto impacto visual.

Rodado em Tóquio em apenas 17 dias e com uma câmera na mão, Wenders, com a ajuda do roteirista nipônico Takuma Takasaki, juntou quatro pequenos contos sobre o cotidiano de um simpático sexagenário cuja função é limpar os banheiros públicos da cidade e desfruta sua vida de modo bem modesto, completamente desprovido de qualquer ambição. Dia após dia. Simples assim.

Como já cantava Chico Buarque naquela canção sobre o cotidiano, aqui todo dia o senhor Hirayama acorda e faz tudo sempre igual. Ou pelo menos tenta. O que aparece de novidade com certeza não vem de suas atitudes ou buscas, mas sim da interferência alheia por onde ele passa. Não há exatamente aquela tradicional sucessão de começo, meio e fim na narrativa de Dias Perfeitos. Como no komorebi, as folhas estão sempre balançando com o vento, mas o resultado da cintilância nunca sai igual para Hirayama. Uma hora é a aventura amorosa do jovem colega de profissão. Na outra, a chegada de surpresa de uma parente adolescente. Em outro, um breve retorno à infância com a diversão proporcionada por um jogo de sombras na calçada somado a interpretações gestuais, sonoras e corporais.

No meio disso tudo Wenders vai espalhando, por meio de discretos códigos suas paixões. Uma delas é o rock’n’roll e isto está representado pelo uso de velhas e defasadas fitas cassetes originais (aquelas oferecidas em um formato da indústria fonográfica e que quem é bem mais velho já podia comprar pronto diretamente nas lojas de discos). Lou Reed, Patti Smith, Janis Joplin… Vem junto com as cenas ainda uma deliciosa trilha sonora com cânones do gênero. Tem “The House Of Rising Sun” (em duas versões, uma dos Animals e outra em japonês), “(Sittin’ On) The Dock Of Bay” (Otis Redding), “Redondo Beach”(Patti Smith), “(Walkin’ Through The) Sleepy City” (Rolling Stones), “Sunny Afternoon” (Kinks),  e “Feeling Good” (Nina Simone), além de dose dupla de Lou Reed (a faixa que “empresta” o nome para o filme, que também fala da simplicidade do amor cotidiano, e uma dos tempos de Velvet Underground, ”Pale Blue Eyes”).

Outra das paixões são os livros e Wenders faz cita brevemente William Faulkner (“The Wild Palms”), Aya Koda (“Trees”), Patricia Highsmith (“Eleven”). Outra, claro, é a expressão pessoal do olhar por meio da fotografia. Retomando aquilo que já aparecera em alguns de seus inspirados clássicos longas, Wenders agora faz de Hirayama seu alter ego. O protagonista possui em casa caixas e mais caixas de cliques de folhas e árvores produzidos diariamente em rápidas idas a parques e praças públicas de Tóquio. No registro de das cenas, inclusive utilizado na montagem, um sem-teto chega de surpresa e dá aquele abraço em um tronco.

Por fim é impossível não dizer que rodar um filme em Tóquio, com referências e personagens japoneses, é a principal oportunidade para o cineasta germânico tecer mais reverências ao seu ídolo Yasujiro Ozu, quem já dissecara no documentário Tokyo-Ga (1985). Estando na mesma cidade e falando o mesmo idioma do diretor (que exatas seis décadas antes de Wenders fizera em Tóquio seu derradeiro filme) funciona como um encerramento de ciclo para o autor de Dias Perfeitos, que já beira os 80 anos de idade.

Não é coincidência que o protagonista tenha sido batizado com o mesmo sobrenome da família de An Autumn Afternoon (1962). Não é coincidência que o título original da obra de Ozu faça referência à mesma estação do ano em que o komorebi é algo bastante comum. Não é coincidência que boa parte do diálogo final entre Hirayama e um desconhecido descreva o fato que, em dezembro de 1963, encurtara a vida de Ozu quase treze meses depois do lançamento de A Rotina Tem Seu Encanto (nome dado ao filme em português). Também não é nada coincidência que Dias Perfeitos, já disponível em streaming no Brasil, seja uma louvação a todos os encantos de uma rotina diária.

Movies

The Flash

Estreia solo de Barry Allen acaba ofuscada pela enxurrada de efeitos especiais e intromissão de mais heróis da DC

Texto por Abonico Smith

Fotos: Warner/Divulgação

“Eu sou o zelador da Liga da Justiça”, diz Barry Allen em determinado momento do início de The Flash (EUA, 2023 – Warner). A reclamação em forma de constatação irônica não é infundada. É bem difícil lutar por um espaço ao sol nas produções cinematográficas de uma casa de super-heróis que mantém em seu panteão de principais figuras Superman, Batman e Mulher-Maravilha. Por isso não deve ser fácil mesmo encarar a resignação de ficar sempre em segundo plano quando o assunto é o holofote da DC para trabalhar seus personagens na sequência de longas-metragens que chegam anualmente às salas de projeção de todo o planeta. Nos quadrinhos era bem mais fácil ganhar projeção e assim o personagem o fez quando foi criado em 1956, durante o início da Era de Prata dos Quadrinhos. Mas quando o assunto vira um blockbuster do cinema, repleto de segredos, altos cachês, incontáveis efeitos de CGI e expectativa de grandes bilheterias, fica sempre mais difícil que a empresa volte seus olhos para nomes de seu elenco de escalões inferiores, a não ser quanto à reserva da cota de seriados de TV e streaming. Com muito dinheiro envolvido não se brinca em Hollywood.

Barry não foi o primeiro personagem a ser chamado de Flash nas páginas impressas com o selo DC Comics na capa. Mas tornou-se o mais conhecido justamente porque chegou quando se apresentava um momento em que a empresa havia decidido dar um reboot em seus heróis e recomeçá-los do zero, trazendo traços e características para o presente. Assim, editoras como a DC e a rival Marvel começaram a se tornar soberanas ao readequar algumas de suas mais conhecidas criações para a juventude daquele período pós-guerra. Foi assim que Allen conquistou popularidade e ingressou na primeira formação da também recém-criada Liga da Justiça.

Eis que é em torno da Liga da Justiça que começa a história do primeiro filme protagonizado e batizado pelo herói cujo poder é correr em uma velocidade fantástica, quase podendo parar o movimento de rotação do planeta e chegando a paralisar os acontecimentos ao redor para mover-se e fazer o que quiser neste intervalo de milionésimos de segundos. O mordomo Alfred tenta localizar os heróis para uma emergência em um hospital de Gotham City. Allen é o primeiro a ir ao local. Logo depois chegam Batman e Mulher-Maravilha e o espectador logo percebe que o tão esperado primeiro longa-metragem do Flash não será somente com o Flash, centrado tão somente no Flash. Para completar, a subtrama principal – e que dá origem à secundária, que une outros heróis e toma conta da narrativa a partir da metade do filme – envolve dois Flashes.

Como é bem comum no cinema de super-herói, aqui a audiência não consegue escapar da inevitável deslizada de quase toda produção do gênero que tenta apresentar um herói para as pessoas mais novas: o flashback contando as origens dele e como foram adquiridos tais poderes que o diferenciam do resto dos humanos. Barry, incomodado com a prisão de seu pai, que alega não ter cometido o assassinato da esposa, descobre como voltar no tempo para consertar a situação e garantir a continuidade da vida da mãe. Nisso, o Barry que veio do futuro ainda se encontra com o Barry do passado quase saindo da adolescência. Antes de se aventurar pelo continuum espaço-tempo, porém, é advertido pelo amigo Bruce Wayne sobre os perigos tenebrosos e irrecuperáveis que a tentativa pode provocar. Claro que, por ser jovem, inexperiente e desastrado, Flash vê a iniciativa dar errado e acaba ficando preso no período onde está, sem poder retornar ao seu tempo.

O maior desafio para Ezra Miller – contratado para viver o herói nos cinemas desde o longa da Liga da Justiça (2017) – é justamente provar ter sido a escolha mais correta para o diretor Andy Muschietti e os produtores executivos do filme. Badalado como uma das grandes promessas de Hollywood no início da década passada, o ator vinha de performances arrasadoras em obras cult como Precisamos Falar Sobre Kevin (2011) e As Vantagens de Ser Invisível (2012). A entrega ao personagem, que sempre fica ali no limiar entre o histriônico e o intenso – favorece bastante Miller nos alívios cômicos da história do Flash, embora também não o faça comprometer nos momentos de maior drama. Em dose dupla, na pele dos Barries de ontem e de hoje, destaca-se na interpretação, a despeito de todas as confusões e polêmicas recentes (abusos, brigas, acusações, escândalos) na qual se envolveu e acabou manchando a reputação profissional e ganhando a pecha de enfant terrible do século 21.

Se Ezra passa ileso na primeira metade, acaba caindo na armadilha provocada pelo roteiro para o seu personagem logo depois. Ao voltar no tempo e ficar preso, Flash percebe que um perigo imenso ameaça o mundo (quer dizer, mais precisamente Nova York e as cidades de Gotham e Metropolis): a chegada do general Zod, o maior inimigo kryptoniano de Superman, que vem para dominar a Terra, para onde fora mandado Kal-El ainda bebê para escapar da destruição de seu planeta e garantir a preservação de sua raça. Zod ainda vem atrás do herói, mas ninguém sabe por onde ele anda. Para salvar Superman, os Flashes acabam convencendo o Batman daquela época a lhes ajudar e no meio do caminho ainda topam com uma outra figura de grande heroísmo no universo das recentes séries da DC, a prima de Kal-El que atende pela alcunha de SUpergirl (Sasha Calle, atriz americana de origem latino-americana que ainda vai dar muito o que falar nos próximos filmes da casa). O que esperava-se ser um filme do Flash torna-se embolado por outros heróis, sobretudo quando as cenas de ação e lutas tornam-se mais frequentes a ponto de quase dominar o arco final. Sem falar que as atuações ficam quase todas subjugadas à proliferação massiva dos efeitos de CGI, com presença ostensiva aqui.

A transição de Barry Allen de um universo para o outro vem a calhar no timing reservado à questão dos multiversos, elemento que anda se propagando feito febre em Hollywood (filmes e animações de super-herói e até no Oscar) nestas duas últimas temporadas. Isca certeira para atrair bilheteria e o interesse de cinéfilos mais ligados à cultura pop. Só que este detalhe, além de abrir espaço para a maçante torrente de CGI, ainda traz consigo um festival de easter eggs daqueles de levar a turba nerd a múltiplos orgasmos nas poltronas. Outros heróis da Liga da Justiça e até aqueles que estão batalhando contra Zod aparecem constantemente em pequenas referências na tela em todas as suas versões, do passado e do presente, do cinema e da televisão. Superman, Batman, Supergirl, Mulher-Maravilha, Aquaman… Quase todos os atores que os interpretaram – como os icônicos Christopher Reeve e Michael Keaton – também são trazidos de volta neste filme para as novas gerações de fãs.

Pena que a enxurrada de efeitos especiais que toma conta da tela sem parar mais acabe por apagar o brilho da história humana durante o restante da projeção e transforme a tão esperada estreia “solo” do Flash no cinema em uma experiência enfadonha até quase o finalzinho.