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O Beco do Pesadelo

Elementos típicos das obras do diretor Gullermo del Toro fazem deste remake com elenco estelar um eye candy com reflexão

Texto por Taís Zago

Foto: Fox/Disney/Divulgação

O misterioso Stan se junta a um Carnival ao fugir de seu passado rural no meio-oeste norte-americano. Ele sonha com um recomeço recheado de fama e dinheiro. Ao encontrar na ingênua Molly a parceira ideal, inicia sua carreira como mentalista e médium. 

O material que Guillermo del Toro escolheu para seu mais recente filme, O Beco do Pesadelo (Nightmare Alley, EUA/México, 2021 – Fox/Disney) não é novidade. Na produção de 1947 (que no Brasil ganhou o título de O Beco das Almas Perdidas), Tyrone Power incorporou com sucesso o personagem Stanton Carlisle. Para muitos, isso bastou como perfeita dramatização do romance escrito por William Lindsay Gresham. Então, por que a necessidade de mais uma versão?

Talvez porque caiu nas mãos certas. Del Toro domina como ninguém o mundo dos monstros (reais e imaginários), o que já provou em obras como O Labirinto do Fauno (2006) e o encantador A Forma da Água (2017). Temos aqui a atmosfera neo-noir já bem conhecida do diretor e roteirista. Tem romance, traição, suspense, figuras bizarras e inusitadas, geeks e bebês com deformidade em conserva de formol. Tudo com muita cor (ênfase nos amarelos e vermelhos circenses), texturas e filtro esverdeado, escuridão e até vignette fade out. Elemento bastante presente na obra do diretor, de novo a abordagem dos anos de guerra faz um contraponto entre os acontecimentos além-mar e os dramas locais dos personagens.

Como se isso tudo já não pagasse o ingresso, o filme ainda tem um elenco de superestrelas da primeira linha hollywoodiana. Alguém sentiu saudades de ver Cate Blanchet e Rooney Mara em um mesmo filme de novo? Tem. Willem Dafoe rompendo a fronteira entre a simpatia e a psicopatia? Tem. Toni Collette como figura maternal? Tem. Bradley Cooper sendo malandro? Tá na mão. Ron Perlman carrancudo com coração mole? Tem também. É um casting perfeito até nos menores papéis, o que muitas vezes faz pensar em desperdício dos talentos, embora não chegue a tanto.

Porém, as figuras, digamos, pitorescas, do Carnival, os cenários e a fotografia ficam em segundo plano nessa obra, apesar da esperada opulência visual estar presente. Del Toro adora enfiar o dedo na ferida e fazer seus (anti-)heróis sofrerem, geralmente provando do próprio veneno, mesmo quando doce. 

Stanton (Bradley Cooper), como todo con man, é autoconfiante, sonha alto e aposta mais alto ainda. Junto à parceira de ilusões (e cama) Molly (Rooney Mara), subestima a inteligência de todos ao seu redor. Stan compõe um perfeito retrato do típico narcisista e Molly é a moça ingênua e de temperamento dócil que junta seus cacos. Durante uma das apresentações de Stan e Molly surge Lilith Ritter (Cate Blanchet), que acaba por formar a ponta que faltava no triângulo de trambiqueiros. A partir daí, mesmo que nas entrelinhas, inicia uma interessante queda de braço entre superstição e ciência. Entre o médium e a doutora em psicologia. Como é esperado, em um bom noir, Lilith e Stan sentem uma atração imediata e irresistível um pelo outro. Blanchet sabe ser sedutora e misteriosa como ninguém. Cooper morde mais do que consegue mastigar. E ele não é o maior tubarão nesse novo tanque da cidade grande.

Parece uma história que já vimos mil vezes? Sim. Inclusive com direito a justiça poética no desfecho. Mas isso não é, neste caso, um demérito. O remake de O Beco Do Pesadelo foi feliz em suas escolhas, acertou no tom, na direção, no elenco e na estética. É um eye candy, sem dúvida. Mas com conteúdo para reflexão.

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M8 – Quando a Morte Socorre a Vida

Racismo estrutural da sociedade brasileira é forte elemento de história em que o plano espiritual não é motivo de horror

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Paris Filmes/Divulgação

O racismo nem sempre é visível para os brancos, mas é sempre sentido pelos negros. A violência estrutural e velada da opressão racial é tema do filme M8 – Quando a Morte Socorre a Vida (Brasil, 2020 – Paris Filmes), do diretor e corroteirista Jeferson De. Com elementos sobrenaturais, a história acompanha a vida de um aluno negro de Medicina, Maurício (Juan Paiva), que tenta descobrir a história de um dos corpos do necrotério da faculdade. 

O filme é impactante e consegue trazer para a tela as sutilezas e as brutalidades vividas pelos negros no Brasil. Maurício é o único aluno negro do curso, ao mesmo tempo em que corpos pretos são maioria no necrotério. Esse questionamento é o estopim para a jornada do personagem que permeia o mundo social e o espiritual em uma trama feita para incomodar. 

Começar a história com “Ponta da Lança”, do rapper Rincon Sapiência, é um acerto e tanto. “Se a vida é um filme, meu Deus é que nem Tarantino, eu tô tipo Django”, ele rima. Aliás, a trilha sonora é um ponto alto da produção, sendo incluída como elemento de formação de Maurício. Em uma cena em que seus colegas dão carona para casa, ele apresenta as músicas do seu universo para eles. 

Mariana Nunes, que interpreta a mãe de Maurício, é uma força em cena. Seus diálogos com o filho rendem os melhores momentos do filme. Uma mulher, negra, solteira, técnica de Enfermagem, umbandista, essa é Cida. Outra figura maternal que figura no longa é a mãe de Suzana, colega do protagonista, que encara uma das cenas mais brutais de racismo. Mesmo com todas as posses e elegância, a mãe de Suzana não se importa com os estudos da filha. Do outro lado está Cida, preocupada com o desempenho acadêmico de seu filho. Dicotomia interessante.

O personagem Gustavo (Fabio Beltrão) é peça-chave para entender o preconceito diário, mascarado de piadas e críticas. Jeferson De consegue captar com maestria as “sutilezas” do racismo de forma a levar o espectador branco a realizar autocríticas e o espectador negro a se sentir visto e ouvido. “Já tem emprego garantido como açougueiro”, chega a dizer Gustavo a Maurício após o estudante realizar com sucesso uma dissecção.

O elemento paranormal presente em M8 – Quando a Morte Socorre a Vida não é uma assombração aterrorizante, como em muitos filmes. Muito disso, aqui, deve-se aos elementos da umbanda incorporados à trama. A cena em que o estudante está no terreiro e é avisado pela mãe-de-santo que o espírito do corpo M8 deseja se comunicar simboliza como a espiritualidade ajudou a montar uma história em que o plano espiritual não é motivo de horror. Diferentemente de histórias em que o catolicismo está em voga, em que o exorcismo e o medo dos mortos é regra, a religião de matriz africana permite a exploração do que vai além da vida e como isso afeta a vida terrena.

M8 – Quando a Morte Socorre a Vida é forte e traz reflexões importantes à tona. A cena final, de extrema delicadeza e emoção, coroa uma experiência cinematográfica que faz jus ao melhor do cinema nacional.