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Placebo

Oito motivos para não perder o único show que será feito em março no Brasil durante a nova turnê de Brian Molko e Stefan Olsdal

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Demorou quase uma década mas, enfim, terminou o tempo de espera. Faltam poucos dias para o Placebo voltar a pisar e tocar no Brasil. Brian Molko e Stefan Olsdal – acompanhados por quatro músicos como apoio no palco, inclusive pelo baixista e tecladista Bill Lloyd, que acompanha a banda desde a os primeiros anos de carreira, também já tendo feito as vezes de tour manager e empresário – chegam por aqui em um momento muito especial. Afinal, em 2024 comemoram os trinta anos de uma carreira sólida e consistente, repleta de hits e marcada pela conquista de uma legião mundial de fãs bastante fiéis.

A nova passagem por aqui será um único show, marcado para São Paulo. Portanto, há apenas uma oportunidade para não perder o encontro com o grupo que, embora tenha sonoridade mais pesada e nem tão retrô quanto alguns de seus contemporâneos mais famosos, foi revelado no bojo da explosão do britpop nos meados dos anos 1990.

Por isso, o Mondo Bacana dispara aqui oito motivos pelos quais você precisa estar presente no Espaço Unimed na noite de 17 março vindouro (endereço, horários, ingressos e demais informações oficiais sobre o evento você pode ter clicando aqui).

Dupla dinâmica

Eles se conhecem desde a infância, quando estudavam simultaneamente (mas não interagiam, já que a diferença de idade de ambos é de dois anos) na Escola Internacional de Luxemburgo. O belga Brian Molko (guitarra, violão, teclados e vocais) e o sueco Stefan Olsdal (baixo, guitarra, violão, teclados e backings ao vivo) só passaram a trocar ideias mesmo quando, já bem crescidos e residindo em Londres, encontraram-se em uma estação de metrô. Conversa vai e conversa vem, não se separaram mais. Passaram a compartilhar o gosto em comum pela música, especialmente bandas alternativas norte-americanas como Nirvana, Sonic Youth e Pixies. Fundaram o Placebo em 1994 e já no ano seguinte apresentaram o primeiro single, com a canção “Bruise Pristine”. Ela foi incluída no álbum de estreia, que veio à luz meses depois. “Teenage Angst”, “Come Home”, “36 Degrees” e “Nancy Boy” também ganharam singles e se tornaram outros sucessos iniciais do então trio – revezavam-se nas baquetas o também sueco Robert Schultzberg e o inglês Steve Hewitt, que tornou-se membro fixo de Placebo (1996) até Meds (2006), quando foi “ejetado” por ter a relação com a dupla desgastada em demasia durante as gravações em estúdio.

Desajuste social

Se você não se sente inserido em padrões da sociedade, seja sexual, comportamental ou mesmo referente a questões da saúde mental, as letras escritas por Brian Molko certamente te representam. A cada disco, o vocalista parece ampliar ainda mais o leque de temáticas sobre distúrbios e a incapacidade de sentir uma pessoa “normal” e não sofrer, de alguma maneira, por isso. Talvez seja este, então, o grande segredo de sucesso e longevidade do Placebo. Afinal, a figura sempre andrógina do próprio Molko é a representação visual de seus versos, o que vem facilitando uma identificação muito rápida de novos fãs nestas três décadas de trajetória da banda.

Selected

Boa parte destas letras das canções foi compilada pelo próprio autor delas para o livro Selected, que recentemente teve disponibilizada a sua segunda edição (em capa dura) em comemoração pelos 30 anos de carreira da banda. São 156 páginas que incluem ainda uma foto, prefácio escrito pelo próprio Brian Molko e 18 novas faixas adicionadas à leva original, totalizando 92. Você tinha três opções de modelos para comprar: não  autografado, autografado (à mão) e personalizado para você (sim, com nominho e tudo escrito também à mão por Molko). Entretanto, as duas últimas opções já estão esgotadas. Custa 25 libras e a aquisição é diretamente pelo site oficial do Placebo (clique aqui).

Discos ao vivo

Depois de ficar um bom tempo sem fazer turnês, foi só cair na estrada de volta para trazer uma bela novidade aos fãs. O vinil branco transparente duplo Collapse Into Never: Placebo Live In Europe 2023 é, de fato, o primeiro disco gravado ao vivo por Brian e Stefan, capturando a atmosfera de palco da banda – a única experiência fonográfica anterior foi extraída de um especial Acústico MTV produzido especialmente para a filial europeia da emissora de televisão norte-americana. Traz, de cabo a rabo, a apresentação realizada em um festival espanhol no início do ano passado. Só que este álbum não é a única novidade vinda em dezembro agora. Placebo Live é um box formado por mais outros dois registros ao vivo, além de Collapse Into Never. Editado no formato blu-ray, This Is What You Wanted também veio da atual turnê – desta vez durante a passagem de Molko e Olsdal pela Cidade do México, também ocorrida em 2023. Já o terceiro, o CD Live From The White Room, saiu de faixas do último álbum executadas pela banda no Studio One do complexo de estúdios para audiovisual que fica em Twickenham, subúrbio do sudoeste de Londres (estes vídeos estão sendo utilizados pela banda como clipes oficiais, aliás). Então, quem não se importa com spoilers e gosta de saber com antecedência o que deverá encontrar no momento de assistir ao show aqui no Brasil, então, tem a chance de mergulhar fundo na antecipação e não se deparar com surpresas.

Never Let Me Go

O Placebo é uma banda metódica com relação a discos e turnês. Grava um novo álbum e sempre reserva um bom tempo para viajar divulgando as novidades – e por causa disso boa parte do repertório sempre vem da safra mais recente de canções. Molko e Olsdal não são muito de manter a banda na ativa com concertos sem pensar nos fãs e em dar novidades a eles. Lançado em 2022 e fruto do isolamento social antecedente, Never Let Me Go interrompeu o maior hiato entre uma obra e outra do grupo. Foram nove anos passados desde o título anterior. Reflexos de medos e inseguranças que vieram com a pandemia refletiram numa sonoridade bem mais pesada e pungente do que a apresentada em Loud Like Love (2013). E isso também se reflete na execução ao vivo. Por isso, a presença de oito ou nove faixas novas no set list deve ser celebrada e bem aproveitada. Quatro delas foram lançadas como singles: “Beautiful James”, “Sorrounded By Spies”, “Try Better Next Time” e “Happy Birthday In The Sky”.

Tears For Fears

Pragmatismo também faz parte da personalidade do Placebo. Quem acompanha a banda faz tempo sabe bem que em seus shows sempre aparecem covers bem interessantes – a ponto de dez deles terem sido compilados em um disco de mesmo nome lançado em 2023. A releitura preparada para a atual turnê homenageia outra dupla, o Tears For Fears. Sempre que voltam para o bis, Brian e Stefan entoam um dos hinos do pop britânico dos anos 1980. “Shout” começa com o disparo de uma percussão eletrônica similar à da gravação original de Roland Orzabal e Curt Smith. Em virtude da característica mântrica da canção, que repete várias vezes o curto e poderoso refrão, também faz com que o restante do arranjo também não seja tão diferente assim. A grande novidade fica no timbre peculiar da voz de Molko comandando a letra.

Kate Bush

“Running Up That Hill (A Deal With God)” foi gravada para ser a faixa de abertura do álbum Covers, que pinçava outras releituras extraídas de lados B de singles e DVDs, trilhas sonoras de filmes e alguns-tributos. A faixa, transformada em synthpop intimista, também foi lançada em compacto e também aparece no disco duplo A Place For Us To Dream (2016), com 36 das músicas mais conhecidas e celebradas do repertório do Placebo. Detalhe: tudo isso bem antes da série Stranger Things utilizar a clássica versão original de Kate Bush em sua trilha sonora e fazer a cantora virar febre, capas de revistas e número um das paradas nos EUA pela primeira vez na vida. O que já era cultuado na versão sussurrada por Molko, então, virou uma boa peça para a renovação de público e atrair como fãs uma horda de nerds mais novos espalhada pelos quatro cantos do planeta. Muitos deles que sequer tinham ouvido a banda anteriormente. E, claro, esta cover também está incluída no bis dessa turnê.

Big Special

Não é nada grande, não é nada especial. O antislogan utilizado por esta banda de abertura serve bem para ilustrar o bom humor desta dupla inglesa, escolhida a dedo pelo Placebo para fazer os concertos de abertura das escalas sul-americanas da atual turnê. E as performances são bastante cruas: contam só com o vocalista Joe Hicklin e o baterista Callum Moloney, também responsável pelos backings e pelo disparo das bases pré-gravadas com baixos distorcidos, guitarras e sintetizadores que completam o arranjo das músicas. A sonoridade percorre a crueza a visceralidade do punk com toques de spoken word. PostIndustrial Hometown Blues é o nome do álbum de estreia recém-lançado. No que depender de faixas como “This Here Ain’t Water”, “Shithouse” e “Desperate Breakfast” não tem como não sair impactado pela performance.

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Alceu Valença – ao vivo

Uma noite com muitos sucessos, histórias de vida e muita dança ao som do pernambucano que atravessa gerações

Texto e foto por Luciana Penante (Bora Curitiba)

Ouvir Alceu Valença é sempre um carinho no coração. Ao vivo, então, é uma experiência única. Hoje um senhor de cabelos grisalhos e compridos, mas ainda esbanjando vitalidade, entoa do alto de seus 77 anos grandes sucessos de sua carreira. É surreal ter ele ali, inteiro, “Alceu dispor” (trocadilho que, por sinal, é o nome da nova turnê).

O público curitibano, dito frio, quase lotou o Teatro Positivo na noite de 19 de outubro e já nas primeiras notas se levantou das cadeiras para dançar ao som das músicas do pernambucano, acompanhado de uma banda irretocável. Sentar mesmo quase que só na hora de colocar o cinto de segurança e viajar para o espaço com Alceu em um “táxi para a estação lunar”, composição sua com Zé Ramalho e Geraldo Azevedo. Sinceramente, a vontade era de ficar por lá, já que a Terra anda tão esquisita.
Mas voltamos para ouvir as histórias de Alceu, que relembrou sua infância em São Bento do Una e levou o público a um passeio por suas memórias ao longo da vida. Como a de quando veio, adolescente, jogar basquete em Ponta Grossa ou quando compôs “Como Dois Animais”, ao ver um casal fantasiado de cachorro e onça durante o carnaval. Ele também falou de seu filme, A Luneta do Tempo, do qual foi diretor e atuou como um palhaço – personagem que chegou a interpretar por alguns segundos para a plateia curitibana.

Para finalizar, Alceu nos brindou com o sucesso “Morena Tropicana”, com o auxílio luxuoso de uma menininha chamada Elisa, convidada a subir no palco para dançar com o cantor e ajudar nos “oiôs” e “aiás”. A pequena não decepcionou: arrancou aplausos entusiasmados da plateia.

Ao final, ficou a sensação boa de ver que o que é bom na música brasileira atravessa gerações. Como este pernambucano sempre atemporal.

Set list: “Bobo da Corte”, “Baião/Vem Morena/A Ema”, “Eu Vou Fazer Você Voar”, “Estação da Luz”, “Girassol”, “Flor de Tangerina”, “Coração Bobo”, “Como Dois Animais”, “Pisa na Fulô”, “Pelas Ruas Que Andei”, “Solidão”, “Táxi Lunar”, “La Belle de Jour”, “Anunicação” e “Morena Tropicana”.

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Pato Fu – ao vivo

Celebração de 30 anos de carreira mostra a arte do grupo de se multiplicar em diversas e absurdas identidades de si mesmo

Texto e fotos por Abonico Smith

Existe um desenho de Hanna-Barbera, lançado em 1966, chamado Impossíveis. Nele, três músicos de uma banda de rock que faz muito sucesso, de vez em quando, transformam-se em super-heróis para salvar as pessoas de terríveis ameaças vilanescas. Todos possuem um alter ego: Homem-Mola, Homem-Fluido e Multi-Homem. Este último tem como superpoder a capacidade de se multiplicar em várias cópias de si mesmo para confundir o inimigo, que pode até destruir uma ou outra criatura nunca consegue pegar a original. Dos três também é ele quem mais se assemelhava a um instrumentista de banda dos anos 1960, por ser o mais desligado e desgrenhadamente cabeludo dos três.

No mundo do rock mas fora do universo cartunesco, há dois bons exemplos de quem também toca instrumentos e prima pelo poder da multiplicação. Um deles é limitado, reduzido a um único videoclipe. Em “The Hardest Button To Button”, o White Stripes se reproduz em vários a cada tempo da batida da música, utilizando ainda a tridimensionalidade de um cenário externo para realçar o psicodelismo do audiovisual. Já o outro nome não faz isso apenas para osnossos olhos, mas sim na questão da estética sonora. E com duração de diversos videoclipes, mais do que uma dezena de álbuns e três décadas ininterruptas de carreira.

Este nome é o Pato Fu, umas das bandas que cravou a cidade de Belo Horizonte no mapa do mainstream do rock nacional durante os anos 1990. E desde então foi construindo uma trajetória sólida, sempre seguindo uma máxima interna: sempre procurar por novos caminhos no disco subsequente. Assim não só se evitou o comodismo, a rotina e a repetição que têm grande risco de surgir durante a estadia na zona de conforto. Assumir riscos, procurar outras sonoridades e se transformar em um Pato Fu diferente a cada trabalho foi justamente o que garantiu a sobrevivência do incialmente trio, por um bom tempo quarteto e hoje quinteto. Longe de significar uma esquizofrenia relacionada a distintas identidades que não dialogam entre si, este constante desafio transformou o grupo em uma bela instituição de repertório, capaz de criar ao longo dos anos diferentes opções de espetáculos (trilhas sonoras, a banda que flutua entre o pop e o alternativo, o Música de Brinquedo) e garantir um séquito fiel de fãs capaz não só de comprar a proposta da variedade como também embarcar junto com os integrantes em viagens no melhor estilo quanto mais absurdo melhor.

Na noite de 30 de setembro, foi a vez do Teatro Guaíra, em Curitiba, receber o espetáculo que celebra as três décadas de Fernanda Takai (voz, guitarra e violão), John Ulhoa (guitarras e vocais), Ricardo Koctus (baixo e voz) e Xande Tamietti (bateria) e Richard Neves (teclados). A turnê passeia pelo Brasil como um dos atrativos elaborados para este momento especial. Dois discos (um álbum de inéditas e um EP ao vivo no estúdio) já estão devidamente disponibilizados em streaming e ainda vêm mais novidades por aí. Enquanto isso o grupo gira por aí pinçando um pouco de cada disco (uns com mais faixas incluídas no set list, outros com menos) e levando a novos e velhos fãs um pouco do que de melhor fez de 1992 para cá. A sonoridade é a de banda. Muitas canções, portanto, aparecem ligeiramente modificadas, já que os álbuns iniciais ainda tinham uma boa carga de programações e batidas eletrônicas, fornecidas outrora pelos 128 japoneses que acionados por meio das traquitanas comandadas por John.

Durante o passeio de uma hora e meia e 25 canções, ficou mais do que claro que do Pato Fu você pode esperar tudo. Mas tudo mesmo. Parte de um set que abandona alguns hits radiofônicos/emetevísticos em prol de b-sidescultuados. Aparacem também alguns covers (Mutantes, Graforreia Xilarmônica, Legião Urbana) que, com maestria e personalidade, ganham um novo revestimento que se metamorfoseia em identidade de Fu e se encaixa no multiverso sonoro do grupo. Dá para esperar também que os mineiros sejam capaz de tirar da manga uma carta (ou melhor, uma música) pela qual ninguém, absolutamente ninguém da plateia espera que seja tocada.

set list começou com ótimos exemplares daquele Pato Fu lá do início, antes mesmo do primeiro contrato para lançar um disco. “Spoc” estava presente na primeira demo tape do então trio e já escancarava as esquisitices de Fernanda, John e Ricardo: pérola pop em compasso ternário, citando os protagonistas de um dos seriados mais cultde todos os tempos (Star Trek, mais precisamente um episódio em que a ética no trabalho era abordada) e tendo uma só uma estrofe, longa e cantada em francês e português, mais refrão minimalista em que cabe até o cacarejo de galináceos. Desde o início, com arroubos ousadia e perfeição, provava-se que tudo, de fato, cabia no Pato Fu.

Na sequência veio “O Processo de Criação Vai de 10 a 100 Mil”, o primeiro videoclipe, faixa gravada no primeiro álbum. Groove irresistivelmente dançante, refrão pegajoso (que falava em ficar pulando alguns anos antes de Sandy & Junior!) e o início do diálogo entre som e imagem, algo no qual viria a ser uma especialidade da banda ao longo de sua trajetória. Enquanto os instrumentistas tocavam em cima de uma base eletrônica no palco, o telão começava a desfilar, simultaneamente, os clássicos clipes produzidos pelos Fus, lembrando o tempo em que o mercado fonográfico nacional ainda procurava aliar qualidade criativa à estética rock’n’roll no audiovisual televisivo.

“Sobre o Tempo”, a primeira faixa emplacada em playlists radiofônicas, completou a trilogia “raiz” que abriu a noite servindo como um espécie de passagem filosófica para o que viria depois: a alternância entre os lados A e B do Pato Fu, o diálogo entre boas faixas “escondidas” no meio dos discos lançados e ouvidos de cabo a rabo pelo fãs e um punhado de sucessos de um grupo mineiro que soube conviver pacificamente entre o underground e o mainstreamdo rock nacional. Nestas três décadas, como uma espécie de profecia de parte do que estava ali na letra daquele primeiro grande hit, o tempo mostrou que correu macio, zunindo como um novo sedã, bem amigo e ainda longe de um final para derrubar a banda.

Na segunda categoria, foram desfiladas canções como “Antes Que Seja Tarde” (início de parcerias bem sucedidas do grupo com o estilista Ronaldo Fraga e o diretor Hugo Prata, com videoclipe fofo misturando ares góticos com a comédia dell’arte), “Depois” (letra fofinha de interpretação aberta – que inclui a possibilidade de abertura de relacionamento ou a chegada de um filho para o casal – casada com um divertido vídeo de terror trash, com direito a neve fake e urso bípede sanguinário), “Ando Meio Desligado” (gravada para a abertura de uma novela das sete da Globo), “Eu” (clássico subterrâneo do rock gaúcho popularizado pelos mineiros por meio de um divertido clipe premiado no VMB), “Canção Pra Você Viver Mais” (presente composto por John como uma espécie de homenagem ao pai de Fernanda), “Anormal” (versos pop de puro romantismo cujas imagens foram pioneiras no uso do equipamento de motion caption aqui no Brasil), “Perdendo Dentes” (reflexões filosóficas em formato de música pop suave), “Made In Japan” (irresistível blend de Muppets Show, versos escritos em japonês, seriados nipônicos com robôs, letra absurdamente sci-fi e vídeo 100% digital) e “Eu Sei” (homenagem groovy aos ídolos da Legião Urbana, que acabaram virando fãs dos Fus).

Com o resto do repertório nem deu para sentir falta de pérolas que ficaram de fora da noite, como “Por Que Te Vas”, “A Necrofilia da Arte”, “Sítio do Picapau Amarelo”, “Qualquer Bobagem”, “Pinga”, “Mamãe Ama é o Meu Revólver” ou “Uh Uh Uh, La La La, Ié Ié”. Clássicos gravados (sejam autorais ou as releituras bem particulares) são o que não faltam para os Fus, afinal. “Água”, “Simplicidade” e “Licitação”, por exemplo. Todos com letras primorosas. A primeira é um belo exemplar de uma época em que novas bandas brasileiras buscavam renovar o rock cantado em português misturando sotaques, ritmos e tonalidades regionais desse extenso país (“Nóis mora aqui no poeirão/ E existe todo dia uma hora da noite/ Em que um trem no meu peito me diz/ A água um dia vai cair/ Lá do céu azulzim/ E com certeza vai estar/ Molhadinha/ E aqui vai virar um lamão/ E nessa hora eu não quero nem saber”). Para completar, o som rolava enquanto o telão mostra as imagens da banda virando desenho animado em 2D, caindo pelos precipícios e correndo por estradas dos cânions feito um papaléguas. A segunda, um pouco mais recente, vai além no olhar para dentro do país: é uma canção sertaneja de raiz que, ao vivo, despida dos vocais mecanicamente robotizados da gravação do disco, ganhou ainda mais charme e beleza (“Vai diminuindo a cidade/ Vai aumentando a simpatia/ Quanto menor a casinha/ Mais sincero o bom dia/ Mais mole a cama em que durmo/ Mais duro o chão que eu piso/ Tem água limpa na pia/ Tem dente a mais no sorriso/ Busquei felicidade/ Encontrei foi Maria/ Ela, pinga e farinha/ E eu sentindo alegria/ Café tá quente no fogo/ Barriga não tá vazia/ Quanto mais simplicidade/ Melhor o nascer do dia”). Já a terceira escancarava lá atrás a veia crítica e politizada de uma banda que, mais recentemente, nunca teve medo de se posicionar publicamente de demonstrar sua insatisfação com o desgoverno que tomou conta do Brasil (“Vamos errar português/ Vamos eleger um bundão/ Vamos votar em quem roubou mas fez/ Pena de morte para os linchadores, ou não?/ Já que a polícia não faz nada/ O menininho da calçada/ De dia dou moedinha/ De noite eu dou porrada”).

Ainda tinha mais delícias reservadas para o set list. “Vida Imbecil”, também de letra sertaneja, já pregava quase a mesma simplicidade dez anos antes de “Simplicidade”, desta vez com um quê de electronica. “Menti Pra Você Mas Foi Sem Querer”, funk a la Jovem Guarda, foi a cota do set list para as músicas feitas por Rubs Troll (ex-colega de John no Sexo Explícito, banda do guitarrista antes do Pato Fu). “Gol de Quem?” (punk rock tradicional de versos nonsense) e “Cego Para as Cores” (agora sobre uma coisa bem séria: como sair do “buraco mental”). Como se vê, várias cópias distintas de uma mesma essência.

Como ali no palco do Guaíra estavam pessoas que gostam de celebrar o passado sem deixar de continuar olhando para o futuro, era claro que o grupo não deixaria de tocar obras de sua safra mais nova – as quatro primeiras faixas incluídas no novíssimo álbum 30. Três delas (“Fique Onde eu Possa Te Ver”, “No Silêncio”, “Diga Sim”)  representam uma faceta mais calma, macia do Pato Fu. Foram feitas durante a pandemia, servem como um respiro para tempos pesados aos quais fomos submetidos recentemente. Tratam sobre isolamento, saudade, tentativa de escape da depressão. Coisa séria e bem sentimental. A outra, no entanto, é uma pedrada. Representa o lado temático mais pesado do novo disco: o politizado. “Silenciador” é curta e rápida como um tiro certeiro. Aborda a questão das novas religiões pentecostais, que se incluem no espectro do cristianismo, mas pregam a intolerância, o preconceito e a violência contra o próximo que não se encaixa dentro de certas normas falsamente validadas por Deus – que, no caso da letra de “Silenciador”, fala pelo cano do revólver. Sombria, assustadoramente arrepiante, caiu como uma luva escalada para a volta da banda para o bis. Começa sem qualquer aviso, termina como uma bala.

Por fim não tem como não deixar de falar sobre duas faixas que nunca deixam de estar presentes em qualquer showdos mineiros. Ambas bastante queridas e cultuadas pelos fãs e que só poderiam ter sido criadas e lançadas por eles – não cabe a qualquer outro artista tentar regravá-las, seja respeitando os arranjos originais ou subvertendo-os. Não dá. “Capetão 66.6 FM” e “Rotomusic de Liquidificapum” são 100% Pato Fu e tão apenas Pato Fu. Ponto final.

“Capetão” é a mais sincera homenagem dos Fus à Cogumelo, selo belo-horizontino especializado em bandas de metal e que lançou discos e nomes cultuados como Sarcófago, Overdose e Sepultura e, assim, colocou a cidade no mapa-múndi dos sons pesados. A música imita uma pessoa que vira o dial à procura de música boa e acaba parando em uma emissora tomada pelo capeta, o bichinho de estimação alimentado pela pessoa que protagoniza os versos. Ao vivo, faz a plateia liberar seus demônios e gritar guturalmente junto com Fernanda, que faz o contraponto entre a fofurice e a possessão. Curiosidade: ela e Ricardo cantam as partes que no disco ganharam as vozes de John e André Abujamra – coautor dessa loucura toda que, não por acaso, encerra a parte do set list antes do bis, chegando coladinha a “Made In Japan”.

A Cogumelo, aliás, bancou o primeiro álbum do Pato Fu, que ganhou o nome da faixa que encerra em definitivo as performances desta turnê. “Rotomusic de Liquidifcapum” virou tão significativa e tão sinônimo de que tudo pode (e se encaixa perfeitamente) dentro da proposta sonora da banda que acabou por batizar o selo próprio criados por eles no meio do percurso, o Rotomusic. Colagem de ritmos que muda algumas vezes do hard rock cantofalado a laAerosmith à polca e vice-versa, acelera e desacelera o andamento e depois acaba por derivar para canção natalina, citação do Kiss, tema dos Flintstones e… musiquinha infantil falando em morte, assassinato e psicose.

Depois disso tudo não tem como continuar mais nada. É e sempre representará os Fus chegando a seu ápice de criatividade, maluquice e identidade múltipla. Daí só fazendo como o Multi-Homem dos Impossíveis depois de se multiplicar, lutar e vencer o vilão. Ele tira o uniforme rubro-negro de super-herói impossível e volta à sua identidade de gente normal, o ruivo Multy do dia a dia. Tal qual Fernanda, John, Ricardo, Xande e Richard o fazem quando se dirigem ao camarim para não mais retornar ao palco.

Set list: “Spoc”, “O Processo de Criação Vai de 10 a 100 Mil”, “Sobre o Tempo”, “Água”, “Antes Que Seja Tarde”, “Licitação”, “Depois”, “Menti Pra Você Mas Foi Sem Querer”, “Ando Meio Desligado”, “Diga Sim”, “Vida Imbecil”, “Eu”, “Fique Onde Eu Possa Te Ver”, “Gol de Quem?”, “Canção Pra Você Viver Mais”, “No Silêncio”, “Simplicidade”, “Cego Para as Cores”, “Anormal”, “Perdendo Dentes”, “Made In Japan” e “Capetão 66.6 FM”. Bis: “Silenciador”, “Eu Sei” e “Rotomusic de Liquidificapum”.

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Ira! – ao vivo

Uma noite nos bastidores da banda, com potência, o repertório do cultuado Psicoacústica tocado na íntegra e a ajuda do amigo Pelicano

Texto e fotos por Pedro Hey Branco

Uma coisa é certa quando se vai a um show de rock: a música precisa ser potente. Sempre esperamos uma nova experiência mesmo com aquelas bandas que já temos como parte de nossa história, como referências musicais, aquelas que já ouvimos dezenas de vezes, mas que seguem movendo nossas almas rockeIRAs. E na última noite de 7 de outubro eu tinha a certeza de que estava prestes a ter mais uma destas experiências, pois a potência do Ira! no palco é do mesmo tamanho do sucesso que a banda experimentou nestes 42 anos de estrada.

Quando saí de casa, com um regalo à mão para um amigo querido, pensei que seria mesmo uma grande noite. A caminho do Teatro Positivo, um daqueles que leva o nome da instituição de ensino em que está situado, eu estava pronto para mais uma aula de rock dos amigos Nasi e Scandurra. Confesso que Edgard é um amigo próximo, ídolo máximo, como pessoa e artista, enquanto Nasi é uma figura mítica para mim, artista, o astro que parece inatingível. Além destas figuras, o Pelicano, que não é aquele saudoso do Passeio Público mas um cara muito querido, competente, prestativo, que carrega o piano nas costas. Puxando a brasa para o produtor, claro, pois estou também nessa lida, há alguns anos, somos parceiros de profissão, mas o Pelicano é uma lenda.

Digo isso para explicar que o presente era para essa figura que fica ali nas coxias, uma garrafa daquelas que todo mundo quer ganhar. Pelicano, muito gentil, me presenteou com um par de ingressos durante a semana e eu não imaginava, apesar da expectativa de um grande show, que esta seria uma das noites mais legais e, inevitavelmente, inesquecíveis da minha vida. 

Ao chegar no teatro, com uma hora de antecedência, corri para o camarim! Pedi ao segurança que comunicasse ao Pelicano que eu estava ali. Rapidamente, o produtor do Ira! veio ao meu encontro e fez uma promessa que qualquer fã da banda daria a vida para conseguir: “após as fotos aqui no salão, vamos entrar para tomar uma água mineral no camarim”. Aguardei as fotos, em seguida veio a proposta mais indecente de todas: “quer assistir ao show aqui da coxia?”. Alegria imensurável tomou conta e, ao mesmo tempo, um receio de estar atrapalhando o trabalho do meu amigo. Com a experiência na produção que tenho, contudo, pensei que poderia contribuir. Lá fui eu para a coxia.

Acabei não indo ao camarim antes do show, mas ali no backstage vi a turma entrando no palco: Nasi, Scandurra, Johnny Boy e Evaristo, com o fiel escudeiro Pelicano na retaguarda. Nesse momento cliquei a banda, fiz uma foto inesperada, aquelas que se consegue na hora, que o clique vem na cabeça e só sai naquele instante, por instinto. A intuição do jornalista, que ali estava como aprendiz e fã de uma das bandas mais importantes da cena nacional.

Respirei fundo e continuei ali, impávido, assistindo a um show potente e impecável. De “Rubro Zorro” a “Mesmo Distante”, as oito faixas do Psicoacústica foram todas apresentadas logo de cara, com primor, em justa comemoração ao disco de 1988. E na mesma ordem. Para muitos, o Psicoacústica é um álbum “lado b”. No meu caso, sempre passeou pelos meus ouvidos, na vitrola ou eventualmente na rádio. A minha familiaridade com esta obra é comparável aos sucessos que todos conhecemos. As músicas celebradas deram vez aos maiores hits da banda ao final da apresentação. Quem nunca cantou “Envelheço na Cidade” ou levantou as orelhas e arrepiou os pelos ao escutar a introdução de guitarra de Scandurra abrindo “Núcleo Base”? 

Em dúvida se assistiria ou não a toda a apresentação da coxia, resolvi dar um pulo na plateia. O público, enlouquecido, confirmava a potência do espetáculo. Em “Rubro Zorro”, vale a ressalva, uma breve homenagem ao filme de Rogério Sganzerla, O Bandido da Luz Vermelha. E, mesmo com a resistência na época das rádios e da gravadora para o álbum homenageado, sem querer fazer aqui o “Advogado do Diabo” (nome de outra faixa), foi um disco marcante que inspirou e recebeu elogios do inesquecível Chico Science, que absorvera como referência do próprio trabalho a sonoridade proposta pelo Ira! nessa faixa. Para alguns, um “disco sujo” pela forma como foi gravado ao vivo, como o próprio Edgard, em resposta oportuna e engraçada a um jornalista antes da apresentação, referindo-se a uma “sujeIRA autoral” e à bela produção do Paulo Junqueiro, seguido das risadas dos presentes. “A sujeira fica por nossa conta!”. Foi uma bela experiência ver a reprodução daquela intensa mistura de rock com psicodelismo, samba, hip hop, embolada e samplers. Tudo sem a estrutura convencional da música pop com refrão e estrofes.

E o que falar dos sucessos marcantes que se seguiram ao Psicoacústica ao vivo? A apoteose do rock nacional, a força gregária dos fãs próximos dos ídolos, a expertise e a virtuosidade da mítica banda que é nosso sol, nosso núcleo base, a ligação que recebemos em uma tarde vazia e que nos derruba como um flerte fatal. Claro que foi nesse momento que a plateia como uma avalanche tomou o gargalo e cantou junto com Nasi e Scandurra as canções que sempre acompanharam nossas vidas, nossas histórias. Como nossas histórias não são iguais, é importante ressaltar o carinho do Ira! com as bandas de Curitiba, citadas e homenageadas: Relespública, Escambau e Cigarras foram generosamente mencionadas nos microfones por Nasi e Edgard. O público, cativado pelos ídolos, emocionado, foi tratado como deve ser, com a luz destas estrelas e com a potência de um verdadeiro show de rock.

Ainda impactado pela experiência na plateia e com o desbunde de circular nas coxias desta mítica banda, corri para o camarim ao final do show. Lá encontrei a lenda, o Valadão, o influencer de receitas saborosas, bons vinhos, filmes e séries interessantes (sigam-no no Instagram!), que estava ali, sentado no sofá, absorvendo mais uma exuberante apresentação. Prontamente, muito generoso como sempre, ofereceu uma cerveja que levava o apelido dele, Nasi, uma APA com um toque de jambu, uma delícia! “É só pegar ali na geladeIRA”, com aquela voz inconfundível e um pouco rouca. Eu só agradeci e elogiei a performance bombástica do Ira! naquela noite. Com direito a cover do Black Sabbath!

E foi ali, ao lado destas lendas, com a cerveja do Nasi na mão, no camarim, que agradeci ao meu amigo Pelicano. Um sonho para qualquer fã dessa banda maravilhosa. Agradeci ao amigo pela oportunidade de aprender e de presenciar a história do rock nacional, em carne e osso, em atitude, som e muita potência. Obrigado, Pelicano!

Set list: “Rubro Zorro”, “Manhãs de Domingo”, “Poder, Sorriso, Fama”, “Receita Para Se Fazer Um Herói”, “Pegue Essa Arma”, “Farto do Rock’n’Roll”, “Advogado do Diabo”, “Mesmo Distante”, “Flores em Você”, “Tarde Vazia”, “Dias de Luta”, “Flerte Fatal”, “Pra Ficar Comigo (Train In Vain)”, “Vida Passageira”, “O Girassol”, “Eu Quero Sempre Mais” e “Envelheço na Cidade”. Bis: “Núcleo Base”, “Black Sabbath”, “Bebendo Vinho” e “O Bom e Velho Rock’n’Roll”.