Series, TV

Bebê Rena

Série da Netflix mostra o impactante resultado de alguém com potencial destruidor que encontra outro empenhado em autodestruição

Texto por Tais Zago

Foto: Netflix/Divulgação

Donny (Richard Gadd) é um comediante que está no limite. Após anos de trabalho com stand up sem obter qualquer sucesso significativo, ele se sustenta fazendo pequenos serviços. Um deles é como barman. E é no pub onde ele trabalha em Londres que em um (não tão) belo dia Martha (Jessica Gunning) entra pela porta, senta-se no balcão e se debulha em lágrimas. Com pena da moça, Donny lhe empresta o ouvido e lhe serve uma bebida.

A partir desse momento Martha aparece todos os dias no bar e seu encantamento por Donny é impossível de ser ignorado, a ponto do rapaz virar motivo de chacota entre seus maldosos colegas de trabalho. O motivo é simples: Martha não se enquadra em uma beleza convencional, não faz grandes esforços para cuidar da aparência e, claramente, mente muito sobre os fatos de sua vida. Mas a paixão dela por Donny, que a princípio reluta em aceitar a afeição, acaba por se tornar uma de suas únicas fontes de atenção.

Donny fica viciado, por um tempo curto, nas injeções de ânimo, apoio e incentivo vindas de Martha e isso o faz ignorar o que pode estar por trás de tanta adulação. Ela está completamente obcecada por ele e em sua cabeça ambos vivem um relacionamento sério. Somente após um date entre os dois se tornar um fiasco é que Donny percebe que Martha é sua stalker e não será fácil se livrar dela. Ou será que é isso mesmo que ele deseja?

O ator, comediante e escritor escocês Richard Gadd criou para os palcos o espetáculo Bebê Rena (Baby Reindeer, Reino Unido , 2024 – Netflix), segundo ele, baseado em fatos autobiográficos. Com o interesse do canal Netflix em fazer uma minissérie do material, Gadd assumiu o roteiro e o papel principal, assim como a tarefa da produção executiva. Weronika Tofilska, coautora do roteiro de Love Lies Bleeding, e Josephine Bornebusch, de Bad Sisters, ficaram com a cadeira da direção dos sete episódios. Para o papel de Martha, Gadd escalou a excelente Jessica Gunning, de The Outlaws.

O resultado dessa junção de talentos é uma obra profunda, de humor ácido e de cenas ousadas e difíceis de serem assistidas. Bebê Rena, apelido carinhoso dado a Donny por Martha, não é de fácil digestão e, apesar da classificação como tragicomédia, é muito mais trágico do que cômico. A minissérie aborda diversos aspectos das formas de perseguição, coação, abuso e violência as quais Donny passa em sua vida. Em especial é recomendada parcimônia com o episódio onde o autor relata o abuso que sofreu pelas mãos de um ator/produtor que ele tanto admirava. São cenas extremamente pesadas e que marcam a espiral da queda de Donny em um buraco sem fundo de autodepreciação e autodestruição, do qual Martha é apenas a cereja do bolo.

Bebê Rena é o humor extremamente macabro e ácido britânico levado às últimas consequências. É onde a dor toma o lugar do riso, onde a falta de perspectiva estimula ações erráticas e impensadas, onde o amor próprio é soterrado pela solidão e pelo abandono levando os personagens às margens da loucura. Tudo soturno, sombrio, úmido e sujo –  os sentimentos dos personagens refletem na cenografia, cenários e figurinos. É a representação plástica da desesperança, feita com maestria e apuro técnico.

Desde agora, esta é uma das melhores séries do ano – e justo da Netflix, que andava nos desapontando com uma crescente superficialidade das obras calcadas em audiência. Raramente se viu os papeis sendo invertidos nas posições de abuso de forma tão crua como aqui. E talvez, até mesmo por isso, Bebê Rena seja uma obra necessária.

Movies, TV

Bigbug

Jean-Pierre Jeunet aposta no humor de sitcom de um futuro distópico e se distancia do mundo fantástico de sua Amélie Poulain

Texto por Taís Zago

Foto: Netflix/Divulgação

Onze entre dez turistas vão a Paris procurando o mundo fantástico de Amélie Poulain. Ou pelo menos um amor francês. Todos se decepcionam. Paris é uma cidade real, grande, metropolitana e com muitas mazelas, como toda grande cidade europeia. Um dos culpados por essa idealização é o diretor e roteirista Jean-Pierre Jeunet e a sua incrível capacidade de enxergar beleza nas pequenas coisas e ao criar cenários fantásticos.

Não entre com essa expectativa para assistir a Bigbug (França, 2022 – Netflix). O filme é uma viagem completamente diferente. O ano é 2045 e, parafraseando uma das personagens, “pensaram que carros voariam no ano 2000 e erraram em 45 anos.” Nesse futuro não tão distante, temos mais um confronto homem versus máquina. Um modelo de distopia já bem gasto depois das inúmeras investidas, algumas bem sucedidas, nesse nicho. O novo filme de Jeunet mais parece um episódio de Black Mirror feito com os Jetsons e com a direção de Tim Burton em Marte Ataca!.

Bom, então seria algo horrível? Não, não é. Ainda continua sendo um filme gostoso assistir, com algumas piadas esporádicas que nos lembram de clichês do comportamento francês. Bigbug tem cenários e figurinos primorosos, até nos mínimos detalhes – o que por si só já vale as quase duas horas de duração. Mas o que temos aqui se movimenta em uma direção contrária a seguida em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. O humor é pastelão; os gestos, exagerados; as emoções, exacerbadas. Sem qualquer reflexão profunda e com zero melancolia.

Jeunet bolou um enredo bastante simples: Alice (Elsa Zylberstein) recebe em casa a visita de um possível pretendente, Max (Stéphane De Groodt), e de seu filho. No meio do date aparece sua filha, seu ex marido Victor (Youssef Hajdi) e a atrapalhada e bem mais nova namorada dele, Jennifer (Claire Chust). Para completar a trupe caótica, do nada aparece a curiosa vizinha Françoise (Isabelle Nanty).

É nesse momento que os robôs que servem os humanos resolvem virar a mesa e transformar seus donos em seus pets/servos. As portas se fecham e os vidros são inquebráveis. Os humanos ficam presos na casa e à mercê de um líder Yonyx, uma espécie de soldado ciborgue/replicante que aparentemente era responsável pela ordem na sociedade humana antes de se rebelar contra seus “mestres”. E agora? Como fugir? Bora lá tentar confundir os robôs! E assim vai até o final.

Bigbug é um filme pra toda a família. É daqueles que poderiam passar tranquilamente em um canal popular, sem corte algum. No meio da tarde. Isso não é necessariamente um demérito, mas produtos com esse padrão de qualidade e profundidade já inundam o mercado. As pessoas fugiram da TV aberta para as plataformas de streaming em busca de experiências novas. Entretanto, Bigbug, infelizmente, é mais do mesmo.