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O Estranho

O aeroporto de Guarulhos, seu passado como território indígena e a opressão capitalista de seus trabalhadores

Texto por Abonico Smith

Foto: Embaúba Filmes/Divulgação

Nesses tempos atuais de bastante fluidez, a impermanência das coisas já nem mais assombra. Nada mais é o que parece ser o já era depois de um mero passeio dos ponteiros do relógio. Um lugar que representa bem esse vai-vem contínuo de tudo – sobretudo das pessoas – é justamente o aeroporto. Por ele passam diariamente incontáveis chegadas e partidas, ainda mais quando se está em uma grande metrópole e a pista abriga voos domésticos e também internacionais. O Aeroporto de Guarulhos, situado quase ali na divisa do limite territorial com a cidade de São Paulo, é um grande exemplo disso.

É justamente o Aeroporto de Guarulhos e seus arredores que servem de ambientação para O Estranho (Brasil, 2024 – Embaúba Filmes), que chega esta semana à exibição em salas de várias cidades do país. O filme gira em torno, entretanto, daqueles que ali ficam no meio de tanta gente que vai e volta. Os trabalhadores que por lá estão dia após dia, prestando serviços quase invisíveis o meio de tanta agitação e correria. Assim como todos os outros passageiros, essa gente também tem seus objetivos, ambições, prazeres, dificuldades e preocupações. Histórias de vida tão ricas e interessantes quanto.

É justamente fazendo uma espécie de poesia visual sobre isso que os diretores Flora Dias e Juruna Mallun se debruçam no filme, que descarta a tradicional narrativa da ficção (a tal trinca formada por começo, meio e fim) para fazer um híbrido estético com a linguagem documental. O aeroporto foi construído em cima de um grande território indígena e Guarulhos é o segundo município do estado com esta população, abrigando, segundo o último censo do IBGE, mais de 1,5 mil integrantes de 14 etnias. Na parte do roteiro que envolve os funcionários do local, Flora e Juruna também mesclam trabalhadores com personagens interpretados por artistas experientes como Larissa Siqueira, Patricia Saravy e Rômulo Braga. A primeira faz a carregadora de malas Ale, que até hoe espera por notícia de sua irmã e também namora a segunda, uma depiladora que trabalha em um salão que funciona por lá mesmo quase sem muitas clientes. O último vive um líder sindical que luta contra a exploração contínua da classe mais baixa da pirâmide social que estão sempre por ali nos terminais e em seus bastidores.

Entre flashbacks de um imaginário território muito anterior à construção do aeroporto (que compreendem saltos temporais que retrocedem até quase o fim do século 15), depoimentos de mulheres indígenas que vivem na região e diversas improvisações entre os atores, O Estranho provoca choques reflexivos por essas linhas tortuosas do roteiro, que começa e termina de modo contemplativo e até mesmo meditativo. Faz pensar no extermínio dos povos originários, na crueldade da evolução do progresso de concreto durante a industrialização promovida no século 20 e sua combinação com a opressão do capitalismo voraz sobre a mão de obra explorada. Faz pensar também na evolução do tempo, na vida e nos lugares, os destinos que se interpõem voluntaria ou acidentalmente na trajetória de cada pessoa ou mesmo lugar e as interferências provocadas por isso.

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Tijolo por Tijolo

O empenho de uma família periférica para ganhar a vida como influenciadores digitais e ter dinheiro para a laqueadura da protagonista

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Olhar Filmes/Divulgação

Não raro nos deparamos com tendências estilísticas na produção cinematográfica brasileira. Esse é um movimento contínuo e sua identificação, uma das vigas do trabalho crítico. O passar dos anos revela com cada vez mais nitidez os inícios, meios e fins destes processos. Parece que Tijolo por Tijolo (Brasil, 2024 — Olhar Filmes), estreia mundial da recém-realizada décima terceira edição do festival curitibano Olhar de Cinema, enquadra-se em um movimento particular destes.

Um documentário aterrado e pouco intervencionista acompanha uma protagonista de alguma minoria social e presença política em sua região: uma premissa que, reduzida às características universais, tem se repetido com frequência. Neste caso, falamos de Cris, seu esposo, seus três filhos e um quarto que está por vir. Com a casa condenada, eles se empenham na construção de uma nova, batalham para ganhar a vida como influenciadores digitais e para garantir a laqueadura da protagonista.

Somos introduzidos a esta realidade desde a primeira cena, uma fala de Cris sobre sua realidade durante um culto religioso. A relação com a religião, inclusive, é outro ponto de tensão-naturalização que é assunto corrente de nossos novos cinemas. Aqui, é naturalizada. Da exposição, partimos à captura passiva da realidade da família, entrecortada com fragmentos da própria produção do casal e de seu filho, Caique. Dos pais, o que vemos são os stories e vídeos curtos que ilustram a jornada, enquanto Caique fala diretamente à câmera e, com ela na mão, nos leva a descobrir os cômodos ainda a construir de sua casa. 

Tais sequências são, talvez, as mais inventivas do longa-metragem. Se a direção de Quentin Delaroche e Victoria Alves opta por uma decupagem simples, que mais retrata situações do que aprofunda reflexões, os vídeos de Caique oferecem uma perspectiva, esta sim, singular, que nos revela como esta criança pensa, como sonha, como enxerga sua realidade.

Conhecemos Cris, Albert, Caique, Isaque, Helena e posteriormente Yasmin pelo apanhado geral das coisas que lhes acontecem. São carismáticos, é inegável, mas a proposta estética que guia nossa relação com eles parece pouco interessada em desvelar as camadas profundas de suas identidades.

Não há aqui tensionamento e indagação. Pelo contrário, Tijolo por Tijolo parece uma propaganda moral de sua protagonista. Um endosso de seu modo de viver a vida, sem mais nem menos. A questão problemática não tem nada a ver com Cris ou sua família, mas à postura irrefletida do filme enquanto janela àquela realidade. 

Não se questiona como a ideologia protestante individualiza o “querer ser rico” de Caique, ainda tão jovem, e isenta a matéria social de sua responsabilidade com as crianças da periferia. Ou como a teleologia da igreja impõe à mãe uma gestação indesejada, pregando que, se Deus quis, deve-se respeitar seu plano. O único discurso estabelecido acerca dos direitos reprodutivos e do direito ao corpo em Tijolo por Tijolo são de Cris, não do filme como matéria própria. 

É como se coubesse ao cinema, instituição cultural polimorfa, a validação de suas personagens e reflexões. Como se uma obra “a respeito de” alguém fosse limitada à extensão do gosto desse. Nos meandros deste problema, que retira do cinema sua capacidade de evocar sensações e conceitos ao chocá-los contra si mesmos, Tijolo por Tijolo se enfraquece e resulta em uma casa com belas paredes, mas uma fundação fraca.

>> Tijolo por Tijolo ganhou os prêmios de melhor montagem e melhor direção da mostra Competitiva Brasileira do 13º Olhar de Cinema e também o prêmio da crítica do festival

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Clube dos Vândalos

Filme baseado em clube cult de motoqueiros serve como cativante memoir do espírito de jovens à margem da conservadora sociedade dos EUA

Texto por Abonico Smith

Foto: Universal Pictures/Divulgação

Nos anos 1940, a conservadora sociedade estadunidense já registrava uma preocupação crescente com as gangues urbanas de jovens taxados de arruaceiros, desocupados e adoradores de brigas e confusões. Em Chicago, a fama caía sobre um grupo de amantes de motocicletas possantes e customizadas. Eles se reuniam frequentemente em bares e possuíam um clube chamado Outlaws, que também promoviam encontros e viagens de fim de semana pelas estradas do país.

Se o automóvel começava a se tornar objeto de desejo da classe média alta branca, símbolo de status e sinônimo de possibilidade de mobilidade e locomoção entre os centros e as casas confortáveis dos subúrbios afastados, andar sobre duas rodas se transformava em sinônimo de maior liberdade e rebeldia para os filhos que já não queriam mais ser e levar a mesma vida dos pais. Sentir o ronco alto do motor combinado à sensação do vento batendo sem parar no rosto, agir sem respeitar regras e fazer isso reunido em uma turma com a mesma paixão avassaladora.

Este foi o segredo do sucesso desses “fora-da-lei”, que, perseguidos pela imprensa e pelo estabilishment, viraram lenda por todo o país e acabaram tendo a imagem transferida para Hollywood na década seguinte. Por meio de filmes estrelados por gente como Marlon Brando e ames Dean mais uma trilha sonora que abraçou o rhythm’n’blues e o nascente rock’n’roll, foi definida uma ruptura definitiva na sociedade e o resto é história da juventude do século 20 para ser contada ad infinitum neste Mondo Bacana.

De volta à questão das motocicletas, elas voltaram ao centro das atenções de quem não pertencia ao meio nos começo dos anos 1960, junto com o nascimento do movimento contracultural que embalou as artes e as universidades dos Estados Unidos, especialmente na costa oeste californiana, daquele período. Os Outlaws ainda existiam do outro lado do país, não mais com seus membros originais e sim com novos integrantes de segunda e terceira geração, muitos deles jovens que formaram filiais em cidades como Milwaukee (Wisconsin) e Louisville (Kentucky), não tão distantes de Chicago mas situadas em estados adjacentes de Illinois. A (má) fama estava agora com outro clube de duas rodas, o Hell’s Angels grupo formado em 1948 em Fontana, sul da Califórnia, na esteira do “sucesso” dos Outlaws, mas rivais em atitudes, preceitos e orientações.

Um dos novos admiradores deste grupo social ainda colocado à margem da sociedade era o fotógrafo e aspirante a cineasta Danny Bloom, universitário nascido em Nova York e simpatizante do New Journalism e sua ideia de que para se escrever sobre, clicar ou documentar algo era necessário que a pessoa estivesse em plena imersão naquele universo.

Bloom passou a acompanhar os Outlaws e entrevistar alguns membros pregressos e suas esposas. O resultado foi um livro de fotos publicado em 1968, sua estreia em obras impressas. Décadas depois este mesmo livro caiu nas mãos do diretor e roteirista Jeff Nichols, que já alimentava o desejo de fazer um longa-metragem ambientado na década sixtie. Ocasião melhor não haveria para transpor o mesmo título do livro às telas e criar uma história que, embora tenha muito de ficção misturada a algumas informações e personagens baseadas na realidade do passado, captasse a mesma vibe dos míticos amantes do estilo de vida sobre duas rodas. Nesta história, os Outlaws se transformaram em Vandals – daí o nome em português Clube dos Vândalos (The Bikeriders, EUA, 2024 – Universal Pictures).

No longa, Tom Hardy faz Johnny, o fundador e líder inquestionável dos Vandals, mezzo justo mezzo impiedoso em suas tomadas de decisões envolvendo o grupo e seus comandados. Austin Butler (que despontou para o estrelato interpretando o rei do rock em Elvis de Baz Luhrmann) faz o “falso” protagonista Benny, jovem seguidor loser do clube. Ele quase sempre acaba se ferrando nas situações que envolvem algum tipo de interação social, mesmo tendo firmeza nas atitudes e valentia suficiente que o credencia até mesmo a ser um possível substituto de Johnny, lá no futuro, na liderança da “gangue”. É ainda o galã dos motoqueiros, com fulminantes olhos azuis e pose enigmática de pet perdido pedindo para ser adotado.

É justamente isso que capta logo a atenção da jovem Kathy (Jodie Comer), a verdade peça central da narrativa. O ponto de vista endereçado ao espectador gira em torno do que ela vê e presencia ao orbitar os Vandals. Sua presença no roteiro é um grande achado de Nichols, que introduz na perspectiva da interminável exalação de machismo, graxa, suor, poeira e testosterona que havia dentro do clube um olhar feminino, com bem menos impulsividade e irracionalidade. No decorrer da trama, a sibilante e anasalada Kathy cresce usando a seu favor o fato de ser a outsider de dentro do grupo outsider.

Contando com uma caprichada trilha sonora (blues, girl groups, psicodelismo), a bela cinematografia assinada por Adam Stone e coadjuvantes de luxo (Michael Shannon e Norman Reedus disfarçados de motoqueiros para lá de rústicos, Mike Faist como o curioso e interessado Danny Lyon, Will Oldham numa ponta de amedrontado dono de boteco), Clube dos Vândalos serve como um memoir do que foi o espírito de um grupo de jovens que dirigiam sempre à margem da sociedade em seu tempo no pós-guerra.

Não é nenhum “filme para levar Oscar” (aliás, a produção, já pronta, foi descartada pela Fox no final do ano, às vésperas das indicações dos Academy Awards, ficou um tempo sem produtora até ser captada pela Universal e chega agora, mais de seis meses depois do previsto, nos cinemas de todo o mundo; a desculpa oficial foi mesmo a de que não haveria tempo hábil de ações prévias promocionais de marketing com os atores por causa da extensão da greve de roteiristas de Hollywood no ano passado; quem assiste ao filme, entretanto, passa a suspeitar de questões de bastidores porque muitas cenas passam longe daquele puritanismo típico que a cúpula da Disney, hoje dona Fox, ama propagar). Entretanto, revela-se uma obra de bastante força afetiva. Isso, no fim das contas, vai contribuir para a caminhada de Clube dos Vândalos depois de passar pelas salas de projeção.

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Tudo o que Você Podia Ser

Longa-metragem mineiro de estética que flerta com o documental aborda como o dia a dia trans pode ser repleto de afeto e carinho

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Composta pelos irmãos Márcio e Lô Borges,  “Tudo o que Você Podia Ser” é a  faixa de abertura do clássico álbum Clube da Esquina, com interpretação de Milton Nascimento. A letra fala de sonhos almejados e algumas conquistas não obtidas mas, sobretudo, de muita luta e perseverança para ir atrás do que se quer. Meio século depois o título vai como uma luva no novo longa-metragem que ocupa, a partir deste mês de junho, dedicado à celebração da diversidade sexual e do orgulho LGBTQIA+, a faixa Vitrine Petrobrás de exibição em salas de mais de vinte cidades mineiras. E detalhe: um a produção mineira, rodado em Belo Horizonte, feita por e com artistas locais.

Tudo o que Você Podia Ser (Brasil, 2023 – Vitrine Filmes) aborda o cotidiano de quatro amigas belorizontinas que se encaixam no espectro que reúne trans, travestis e pessoas não-bináries. Com direção de Ricardo Alves Jr e roteiro de Germano Porto, o filme aborda, com muita simplicidade, o dia a dia das personagens interpretadas por Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares, cujas histórias contadas na tela (e também seus nomes) acabam se misturando tanto com a realidade que os créditos dos diálogos também são creditados ao quarteto vindo do teatro da capital mineira. Ali, em cena, abordando a simplicidade do dia a dia de todas elas – seus sonhos, objetivos dificuldades, experiências de vida – durante os últimos momentos da mais velha delas na cidade, já que ela embarcará para uma viagem e quer curtir ao máximo os últimos momentos de afeto com as pessoas do seu coração.

E é justamente na questão do afeto que reside o grande trunfo do filme. Primeiro porque demonstra que questões referentes à identidade queer também podem ser encaradas de boa no seio da família, sem derrapar para preconceito e não aceitação. E o filme também mostra que transexualidade e não binariedade podem muito bem rimar com situações cotidianas absolutamente comuns para o lado cisgênero, como estudos avançados (uma das personagens relata que acabou de ser aceita em um curso de doutorado na Alemanha), visita a um sobrinho recém-nascido, escolha de roupas para doação, um mero jogo tipo verdade ou consequência, preparação para a balada ou mesmo a larica da madrugada numa lanchonete de rua. A principal bandeira aqui é fazer cair por terra aquela imagem de que uma vida trans, por mais perrengues que possa vir a ter, precisa vir encharcada em tintas soturnas, escondida na marginalidade ou conflituosa na sordidez.

Aí que entra outro trunfo do longa, menos perceptível para o espectador que não decodifica muito a linguagem do cinema. Cheia de improvisações e naturalismo de imagens, a ficção de Tudo o que Você Podia Ser beira a aparência documental, também, de certa forma, flertando com o gênero. De vez em quando a câmera treme, vai buscar alguém que está completamente fora do início daquela cena e se permite colocar na situação de que nem tudo está no controle do diretor, roteirista e, sobretudo, do diretor de fotografia.

Os abraços, beijos, carinhos e afetos transmitidos por e entre Aisha, Bramma, Igui e Will representam o poder social desta produção, tão necessária para o levante LGBTQIA+ que invade nossas artes trazendo a representatividade e diversidade dos dias atuais. Que venham mais obras cinematográficas neste sentido.