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O Dilema das Redes

Docudrama perturba ao revelar que grandes empresas de tecnologia da internet sempre manipularam o comportamento dos usuários

Texto de Maria Cecilia Zarpelon

Foto: Netflix/Divulgação

Em uma época marcada pela liberdade de opinião e em que todos acreditam ser donos de seus próprios pensamentos e ações, O Dilema das Redes (The Social Dilemma, EUA, 2020 – Netflix) vem para escancarar o quão erradas as pessoas estavam sobre isso. Dirigido por Jeff Orlowski, o documentário não é uma obra extraordinária, porém torna-se indispensável em uma era que todos passaram a acreditar apenas naquilo que lhes convém.

Não é nenhuma novidade que as redes sociais e a tecnologia impactam o modo de vida de pessoas do mundo inteiro e põem valores universais – como a democracia – em xeque. Este tema já foi tão exaustivamente debatido em reportagens e filmes que não consegue mais chocar os espectadores da forma que se esperava. Mas não é isso o que acontece em O Dilema das Redes. O que difere o longa de Orlowski de tantas outras produções é justamente o tapa na cara do espectador quando ele se depara com o fato de que todos os usuários das redes sociais – isto é, boa parte da população mundial – são apenas cobaias de um grande experimento de marketing. São apenas ratos de laboratório fazendo a grande roda do capitalismo girar.

A ideia romantizada de que as redes sociais só trouxeram benefícios e conectaram famílias distantes é, para se dizer o mínimo, um tanto ingênua. No docudrama de pouco mais de uma hora e meia, o público é apresentado aos depoimentos de grandes ex-executivos e ex-designers das maiores empresas de tecnologia do planeta como Google, YouTube, Facebook, Instagram e Pinterest e descobre que o trabalho desses homens era basicamente criar os melhores mecanismos para prever as futuras ações de cada usuário e, assim, ter assertividade quando as plataformas lançassem um anúncio publicitário. Ou seja, todas as pessoas que acreditam estarem apenas se conectando com amigos e familiares e compartilhando vídeos bacanas são, na verdade, o produto vendido em um mercado que negocia essencialmente o comportamento humano. Não parecemos tão donos de nossos próprios hábitos agora, não é mesmo? 

Se você acha que os proprietários de big tech são bonzinhos e por isso as redes sociais são espaços grátis, está redondamente enganado. Essas redes são pagas por anunciantes e por um único motivo: conhecer precisamente o comportamento de cada um. As plataformas oferecem basicamente a mudança gradual dos hábitos dos usuários, de suas crenças e até de quem são. Visivelmente, essas empresas deixaram de apenas prever as vontades dos usuários, mas passaram a ter a capacidade de criá-los. Depois dessa visão íntima e crua dos bastidores das redes, parece que não somos tão responsáveis por nossas próprias ações quanto acreditávamos. 

Alternando com os testemunhos dos ex-funcionários, o longa apresenta uma família norte-americana ficcional – bastante clichê, diga-se de passagem – que é afetada pelo uso das redes sociais. Embora a dramatização sirva para explicar para os leigos como funciona a manipulação por meio dos algoritmos, algo geralmente muito abstrato, ela é tão embaraçosa e cafona que em alguns momentos chega a ser cômica.

Além dos magnatas do Vale do Silício (a maioria de homens brancos até cerca de 35 anos), também são apresentadas as opiniões de especialistas como Soshana Zuboff, professora emérita de Harvard – que é, inclusive, uma das únicas mulheres entrevistadas. O problema é que a grande ênfase está nos milionários arrependidos que retornam do lado sombrio da força (leia-se big techs) para trazer a grande solução e salvar o mundo de um problema que eles mesmos criaram. Me poupe! No entanto, o recado do documentário é tão relevante e assustador que felizmente os defeitos e as fatídicas encenações são quase esquecíveis. 

Trazendo para os dias atuais a clássica alegoria do terror do cientista que foi longe demais com sua criatura, O Dilema das Redes consegue uma façanha difícil de ser alcançada ultimamente: assustar. Ouvir da boca dos homens que estavam por trás de toda essa tecnologia que os efeitos nefastos das redes sociais – como as notificações e o movimento de deslizar o dedo para cima – nunca foram acidentais é algo poderoso. O vício, a insegurança e a ansiedade que as redes geram não foram meros imprevistos na programação. Pelo contrário, foram metas predefinidas, arquitetadas e pensadas para conseguir o que toda e qualquer rede deseja: manipular quem somos. 

Ao se aproximar do final da narrativa, a sensação asfixiante torna-se cada vez maior. Foi criada uma realidade da qual é quase impossível sair. Porém, para além desta visão apocalíptica, o longa tenta dar alguma pontinha de esperança aos espectadores, dizendo que talvez (e só talvez) ainda seja possível mudar a realidade. Se não podemos simplesmente fingir que as redes sociais nunca existiram, então é preciso reformá-las. O Dilema das Redes é um grito em alto e bom som que emerge da cacofonia de produções sobre a nocividade tecnológica. Talvez este longa perturbador seja um despertar da consciência de que essa realidade está em toda parte e é preciso questioná-la. Caso contrário, vamos continuar vivendo dentro de uma grande ilusão na qual não somos o mágico, mas o público fascinado e cego.