Music

Arquivo MB: E.S.S. (2002)

Texto publicado nos primeiros meses deste site celebrava o futuro da banda curitibana de digital rock, comandada por André Sakr

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Texto por Abonico R. Smith

Foto: Reprodução Facebook (obs: se foi você quem fez este clique, por favor, entre em contato para que possamos dar o devido crédito)

Não faz muito tempo assim. Década e meia atrás, na Inglaterra, o amor tomava conta de todos os dias do verão, guitarras andavam de braços dados com baterias eletrônicas e sintetizadores. Todo mundo só pensava em se divertir. Descendo o hemisfério e cruzando o Oceano Atlântico, porém, o panorama estava longe de ser igual. Música de pista era tudo taxada de dance music (ou – pior ainda – algo 100% comercialóide e por isso mesmo totalmente condenável e indefensável), sair para se acabar de dançar até o sol raiar e relatar publicamente a simpatia pelas músicas de Depeche Mode e New Order para todos os defensores do “rock-testosterona” significava o mesmo que assumir uma “orientação sexual heterodoxa”, mesmo que você não a tivesse.
Pois patrulhamento e preconceito acabaram. Com a (r)evolução tecnológica tomando o mundo a passos largos, a música eletrônica não só transformou-se em algo completamente usual como também oficializou de vez seu casamento com as guitarras – raivosas ou sentimentais, dedilhadas ou à base de riffs, reprocessadas ou orgânicas. E em Curitiba uma turma vem se especializando em promover cada vez mais esta espécie de ex-bicho papão, o digital rock.
Igor Ribeiro (teclados, guitarras e vocais; também integrante dos grupos/projetos Tods, OAEOZ e Iris), André Sakr (bateria, teclados, programações e vocais; também Iris), Fernando Lobo (baixo e vocais; também Tods) e Alessandro Oliveira (guitarra e vocais – nota posterior do autor: o mesmo que, futuramente, tocaria no Copacabana Club e no Audac) formam o E.S.S., quarteto que está com seu primeiro álbum quase finalizado. Enquanto o disco não fica pronto, o grupo se divide entre a produção de algumas festas bacanas (que já contaram com apresentações de bandas como Bad Folks, Mosha, Grenade, Suite Number Five e o hoje “importado” Wry) e viagens para o exterior (mais precisamente Igor e André, que passaram um tempo em Londres ao lado dos outros companheiros do Tods). Há ainda um EP chamado Rossfield rolando pelas mãos mais antenadas da cidade.
Rossfield é uma grande viagem para a cidadezinha que existe no interior de cada um”, explica vagamente Sakr, parafraseando uma antiga entrevista dada pelo grupo a uma emissora de rádio do litoral de Santa Catarina. O ponto de partida começa nos cem segundos de “Introducting Myself”, gravada na véspera do embarque de Igor e Fernando para Londres, no início deste ano. A faixa de abertura é um irresistível big beat construído a partir de biblioteca própria de samples. Enquanto o loop com o batidão funky rola solto, uma voz grave, reverberante e alterada pelo pitch serve de mestre-de-cerimônias para a própria banda. Entram alguns efeitos sobrepostos, uma linha melódica cantarolada e, enfim, palmas quando é anunciado o grupo.
Chega então, o “verdadeiro” E.S.S. em “Nine”, épico de quase nove minutos aberto pela confluência de graves teclados kraftwerkianos, batida com variação entre o housee o glammais e guitarras com linhas e riffs calcados na herança do blues e do rockabilly. A sonoridade à la Depeche Mode vai aumentando à medida que entra a primeira voz. “Things you do don’t make me change my mind/ Things you do don’t make me change my way of thinking about you”, protesta Igor. Depois entram camadas de órgãos e outros teclados e berros sufocados de Sakr, para os versos serem repetidos algumas vezes, agora com guitarras mais fortes (com muito delay) e em primeiro plano. Gravada ao vivo e em apenas dois canais, a música é um mistério até mesmo para seus integrantes. “Acho que é sobre estar puto com alguém”, arrisca o maior responsável pelas programações eletrônicas do grupo.
No mesmo dia e esquema de “Nine” o quarteto gravou “Mr Alexander”. Esta é uma faixa dividida em duas partes distintas. A primeira puxa um pouco mais para o lado psicodélico, com profusão de ecos, órgãozinho e batida funkeada. Lembra um pouco da veia rocker de Manchester do começo dos anos 1990 (leia-se a trinca Stone Roses, Inspiral Carpets, Happy Mondays) e abusa dos vocais de Alessandro invertidos no software usado para a edição. Enquanto isso, os versos retratam uma típica noite adolescente em Curitiba – mais precisamente ao encontrar os amigos em um dos mais famosos pontos indie da capital paranaense, o James Bar. “Talvez até esteja cantando algo autobiográfico”, revela Sakr. Alessandro então assume sua porção guitar hero entre solos e novos riffs e lá pela metade o arranjo começa a acelerar de maneira absurda, bombardeando os ouvidos por quase quatro minutos de pura viagem.
“Wake up/Look Around”, comanda uma misteriosa voz no terceiro épico do disco. House de dez minutos e a primeira música a ser composta pela banda, “Rossfield” está cheia de mensagens subliminares (pelo menos é o que garante André, que não quis entrar em maiores detalhes). Quem não quiser ficar de ouvido ligando procurando pistas feito Mulder e Scully, porém, pode se ligar no riff do baixo distorcido de Fernando – seguindo a escola do Primal Scream. E depois de um breve interlúdio ambient, volta a detonação de ritmo e barulho, cheia de efeitos, guitarras e gritos por Rossfield.
A julgar pela prévia, o E.S.S. (segundo André, “a sigla veio da expressão Experimental Sex Sound, mas hoje não significa nada em especial”) promete dar muito o que falar em 2003. Apostas estão feitas.

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André Sakr faleceu em São Paulo, neste último domingo, 3 de março de 2019.

Music, Videos

Clipe: Underworld & Iggy Pop – Get Your Shirt

Artista: Underworld & Iggy Pop

Música: Get Your Shirt

Álbum: Teatime Dub Encounters EP (2018)

Por que assistir: Lançado em 1996, o longa britânico Trainspotting estendia a sua qualidade para fora das telas. Trazia a tiracolo uma excelente trilha sonora, daquelas cultuadas e lembradas para sempre, com um repertório que mistura alt-rocke electronica, dois gêneros bastante em voga naquela época. Filme e disco já começavam com a irresistível batida de “Lust For Life”, faixa composta por Iggy Pop e David Bowie e gravada quando o segundo levou o primeiro para um exílio-pseudodetox de dois discos no período de um ano vivendo na então isolada cidade alemã de Berlim. Já quase fechando o set aparecia um dos remixes para “Born Slippy”, faixa estouradaça do então trio nas pistas, graças à sua mântrica sonoridade que misturava um beatintenso e percussivo (tal qual “Lust For Life”, aliás) e versos que repetiam exaustivamente a palavra “boy” em seu final justamente para provocar um êxtase sensorial que leva à dança descontrolada. Passados pouco mais de vinte anos, estes dois nomes se juntam agora em um mesmo trabalho. Teatime Dub Encounters, EP que chegará às lojas físicas e virtuais na última semana de julho, traz quatro faixas com o vozeirão grave de Iggy Pop unidos às tessituras hipnotizadoras de Karl Hyde e Rick Smith. Pop, entretanto, pouco canta. Ele declama os versos, na melhor tradição dos discos de spoken word. Entretanto, a poesia da métrica das palavras acaba se casando com perfeição nas bases de Hyde e Smith, ora desacelaradas ora turbinadas, passeando entre o house, o trance, o dube o ambient. Nesta faixa, mais especificamente, Iggy manda frases que, segundo a dupla, compõem um mosaico de lamentos, arrependimentos, frustrações amorosas e, claro, flertes presidenciais. No clipe, três chiques dançarinos se jogam no dancefloor em câmera lenta e com um efeito visual que distorce seus corpos e torna tudo ainda mais viajandão. Fãs da equação electronica + rock (isto é, Eurythmics, LCD Soundsystem, Depeche Mode) certamente vão adorar o resultado.

Texto de Abonico R. Smith

Music

Mogwai – ao vivo

Apresentação da banda escocesa em São Paulo prova que o etéreo pode estar em constante erupção

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Texto por Fábio Soares

Foto de Zazá ASF

Descobri o som do Mogwai um pouco tarde demais – há cerca de quatro anos. Em um primeiro momento, o classifiquei como “dream pop pesado”, um Cocteau Twins “modernoso” sem que esta definição lhe traga demérito algum. Para mim, o post rock sempre significou a tradução exata de nosso estado de espírito. Um liquidificador sonoro aonde ambientjazzsamples e guitarras equivalem-se, equalizando nosso humor através de estímulos sonoros variáveis. E poucos comandam este caldeirão de forma tão harmoniosa quanto este grupo escocês.

A máquina capitaneada por Stuart Braithwaite mais parece uma inesgotável engrenagem de criatividade e inspiração: em vinte anos de carreira já são onze álbuns de estúdio, um disco ao vivo, dezenas de compilações, EPs e participações em trilhas sonoras. Um objeto de culto com seguidores fiéis por onde passa e que na última terça-feira (8 de maio) teve seu terceiro capítulo em terras paulistanas. Como era de se esperar, o Tropical Butantã, local da apresentação, não lotou. Ainda bem. Uma das poucas casas em São Paulo aonde não se pratica a famigerada pista premium, propiciou aos mais fanáticos a oportunidade de acompanhar o gigante escocês bem próximo ao palco. Calculo que 600 ou 700 afortunados estavam presentes, prestes a embarcar numa viagem ímpar e inesquecível. Antes do show, o equipamento ali disposto já impressionava: amplificadores valvulados, guitarras Fender Jazzmaster e teclados Moog já davam a ideia do turbilhão sonoro que viria.

Com doze minutos de atraso, o capitão Stuart adentrou o palco acompanhado do baixista Dominic Aitchison, do tecladista/baixista Barry Burns, do também guitarrista Alex Mackay e da baterista Cat Myers, integrante da dupla Honeyblood e bendito invertido fruto entre os homens que, às pressas, substituiu Martin Bulloch, obrigado a abandonar a turnê em outubro passado por problemas de saúde.

O avião taxiou na pista ao som de “Crossing The World Material”, faixa do último álbum “Every Country’s Sun”, com algo que chamou a atenção: a luz do palco jamais focaria os integrantes, claramente entregando a intenção do grupo em enaltecer apenas a sua música. Iluminação irregular que levou fotógrafos ao desespero (eu, incluso) à procura do melhor átomo de segundo para um registro decente. A ordem para decolar ainda não viria com “I’m Jim Morrison, I’m Dead”. O piano de Burns chorosamente dialogava com a guitarra de Mackay acompanhados por uma quase fúnebre batida de Myers. Não deixou, porém, de ter um belo final antes da decolagem.

O voo propriamente dito teve início com “Party In The Dark”, com sua irresistível linha de baixo e a voz de Braithwaite entoando o pegajoso refrão “I, taken from those spirals be both kind/ Hungry for another piece of mind” Ninguém ficou parado durante maravilhosos quatro minutos e, àquela altura, a simbiose entre público e banda já estava completa. Após a cadenciadíssima (e melancólica) “Cody”, a espetacular “2 Rights Makes 1 Wrong” deu à audiência a exata noção da meticulosidade das composições do Mogwai. Fiquei imaginando por quantos meses a banda ensaiou esta canção antes de apresentá-la ao vivo, tamanha a complexidade de seu arranjo. A seguir, veio “Coolverine”, uma de minhas prediletas do último álbum, com marcação “quebrada” da bateria de Myers em contraponto ao teclado Moog de Byrons. Seis hipnotizantes minutos que encerraram a primeira parte do espetáculo, a qual batizei de “Etéreo” (coisa minha, nada official!). A lenda estava ali, viva à minha frente. Mas o melhor ainda estava por vir.

“Rano Pano”, do álbum Hardcore Will Never Die, But You Will, abriu a segunda parte da apresentação, a qual batizei de “Erupção” (novamente coisa minha, nada official!) com suas guitarras e baixo distorcidos à enésima potência em um imutável andamento durante toda a execução. Destaque para os teclados de Byrons que assumiram ares de piano de cauda na canção seguinte, “Friend Of The Night”, do álbum Mr. Beast. Trilha sonora adequada para um caos contido e que perfeitamente poderia fazer parte de Mellon Collie And The Infinite Sadness, dos Smashing Pumpkins.

“Don’t Believe The Fife” (outra faixa do último álbum) surgiu em seguida com atmosfera de ficção científica. E não é exagero algum afirmar que seu arranjo pode muito bem ter sido inspirado em “The Hall Of Mirrors”, do Kraftwerk (por que não?). Comparações à parte, seu final “casou” perfeitamente com a introdução de “Auto Rock” (mais uma faixa de Mr. Beast e que trazia a figura de Alex Mackay a auxiliar Byrons aos teclados, com Cat Myers ao fundo a esmurrar seu set de bateria), preparando o terreno para um verdadeiro terremoto sonoro chamado “Remurdered”. Um arrasa-quarteirão com fraseado de teclado pesadíssimo e linha de baixo idem. Novamente ficava escancarada a influência do Kraftwerk no som do Mogwai. Aos mestres, com carinho!

“Old Poisons” foi uma jam sessiondistorcida e ensurdecedora. Byrons largou o baixo e, juntamente com Stuart e Mackay, formou uma parede de guitarras altíssima com volume altíssimo. Impossível ficar parado e também não se impressionar com a performance de Myers durante a música. De éterea “Old Poisons” não tem nada. Nunca terá. Foi um “encerramento” digno para a pausa antes do bis.

Cinco minutos depois, a banda ressurgiu para “Every Country’s Sun”, faixa-título do último álbum. Grande performance de Braithwaite nas distorções de sua Jazzmaster. Na verdade, funcionou apenas como vinheta para um epílogo apoteótico.

Gostaria de encontrar palavras para definir o que foi a execução de “Mogwai Fear Satan” e a magnitude que esta composição transmite. Só que nada que escreva aqui, exemplificará com exatidão o que foi aquilo na noite de terça: andamento marcial e constante no início, guitarras distorcidas em alto volume na segunda parte, andamento longo e descompassado descambando para a lentidão… lentidão… mais lentidão… para só depois… muito tempo depois…. EXPLODIR NUMA ERUPÇÃO SONORA DEVASTADORA! Um momento único! Uma trilha sonora apocalíptica que encerrou com brilhantismo uma apresentação memorável.

Direi aos meus netos que vi o expoente de um estilo musical em sua plena forma abrir mão de um telão no palco para priorizar aquilo que sabe fazer de melhor. Fazer música. A sua música. Então, voltei para casa com a certeza de que o Mogwai não é somente uma banda. É o nome que se dá a um infinito mundo de possibilidades sonoras. Um combo sensorial que somente icebergs ignorarão.

Do etéreo à erupção, sempre. Que assim seja!

Set List: “Crossing The Road Material”, “I’m Jim Morrison, I’m Dead”, “Party In The Dark”, “Cody”, “2 Rights Make 1 Wrong”, “Coolverine”, “Rano Pano”, “Friend Of The Night”, “Don’t Believe The Fife”, “Auto Rock”, “Remurdered”, “Old Poisons”. Bis: “Every Country’s Sun” e “Mogwai Fear Satan”.