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Thor: Amor e Trovão

Deus do Trovão volta às telas em aventura solo tresloucada e que foge da zona de conforto habitual dos filmes da Marvel

Texto por Andrizy Bento

Foto: Marvel/Disney/Divulgação

Uma lição valiosa transmitida em Deadpool 2 (2018) e que é reiterada por Thor (Chris Hemsworth) no novo filme protagonizado pelo Deus do Trovão é “jamais conheça seus heróis”. No primeiro caso, a constatação rendeu tiradas geniais de Deadpool (Ryan Reynolds) a respeito do Fanático (também interpretado por Reynolds). Já Thor: Amor e Trovão (Thor: Love and Thunder, EUA, 2022 – Marvel/Disney) gera uma sequência impagável trazendo Russell Crowe no papel de um afetado Zeus. Mas essa está longe de ser a única passagem antológica do longa dirigido por Taika Waititi que, antes, já havia comandado Thor: Ragnarok (2017), o único dos exemplares dos filmes solo do Thor a ser elogiado por público e crítica em igual proporção. O cineasta mostra, com efeito, que é possível escapar da fórmula consagrada pela Marvel Studios sem perder a essência que define os filmes da empresa. As liberdades concedidas pelos produtores ao realizador são limitadas, é fato. Mesmo assim, Taika não hesita em meter o pé na porta o máximo que pode (e que o estúdio permite). O resultado é um filme ousado, dinâmico, ágil, com sequências de ação eletrizantes e muito bem executadas, além de um entretenimento altamente divertido que abusa do humor nonsense.

A trajetória do Deus do Trovão começou de maneira bastante irregular nos cinemas. Primeiramente com um filme de origem (Thor, 2011) que não se destacava entre seus pares. Não se revelava algo exatamente burocrático, mas estava distante de uma produção satisfatória – era até competente e nada muito além disso. Com Thor: O Mundo Sombrio (2013), o herói conheceu a fúria de fãs e especialistas que não hesitaram em tecer severas críticas ao longa que, até hoje, após o lançamento de quase trinta filmes, é considerado um dos piores exemplares do MCU. A solução para alavancar o personagem nas telonas veio com a contratação de Waititi e o lançamento de seu Thor: Ragnarok, garantindo sucesso comercial e artístico para a empreitada. Isso fez com que fez com que o cineasta se sentisse confortável o suficiente em manter o tom de Ragnarokem Amor e Trovão. Sem preocupação em situar a narrativa em um contexto mais próximo da realidade, a nova produção aposta em uma fantasia tresloucada aliada ao humor absurdo. O diretor não se limitou a repetir a façanha, como amplificou conceitos trabalhados no filme anterior e que tão boa aceitação tiveram junto ao público.

A produção começa contando a origem do vilão Gorr (Christian Bale) que, posteriormente, passa a ser conhecido como o Carniceiro dos Deuses. Os antagonistas quase sempre representam o ponto fraco dos longas da Marvel, pois são, em sua maioria, um genérico do mal dos heróis, sendo descartáveis no todo, salvo exceções pontuais. Gorr, por outro lado, tem um passado de sofrimentos que, em sua mente vingativa e insana (após todas as tragédias que presenciou e viveu, diante do absoluto desdém pela vida dos discípulos demonstrado pelo deus a quem ele costumava adorar), justifica seu propósito: o da completa extinção dos deuses. Aqui já percebemos uma pequena evolução neste filme em relação aos predecessores. A narrativa se importa mais com a construção de personagens e também em estabelecer e se aprofundar nas relações entre eles. Após o prólogo que narra o surgimento do vilão, vemos que Thor continua lutando ao lado dos Guardiões da Galáxia (em participação especial quase imemorável) e a cientista Jane Foster (Natalie Portman) recebe um diagnóstico de câncer. 

Já quase sem esperanças, ela parte para uma vila situada na Noruega e habitada pelo povo remanescente do original reino de Asgard após sua dizimação. Além de abrigar os sobreviventes, entretanto, a Nova Asgard se tornou atração turística: recebe visitas de grupos de pessoas que vão até o local para assistir às lendas do extinto planeta sendo recontadas em forma de peças teatrais, além de conferir de perto artefatos e outros itens que fazem parte da história e da memória da extinta localidade. A Nova Asgard é governada por Valkyrie (Tessa Thompson), bastante entediada com o novo ofício e que não vê a hora de se aventurar em nova batalha sangrenta. Jane chega ao local em busca do martelo de Thor, o Mjölnir, que se encontra aos pedaços. Como Thor fez o martelo prometer que tomaria conta de Jane quando ambos ainda estavam em um relacionamento, ela possui uma ligação com o artefato, o que a faz transformar-se na Poderosa Thor. Apesar do caráter mais intimista que o arco de Jane Foster ganha a princípio, a narrativa assume descaradamente a megalomania, seja no plano conduzido por Gorr de matar todos os deuses ou na transformação de Jane, que assume o manto e o Mjölnir da Poderosa Thor – e até em outros aspectos flagrantes como efeitos especiais, edição de som e até mesmo na seleção de músicas que integram a trilha sonora.

Taika Waititi acerta no tom novamente, abusando das liberdades que lhe foram concedidas pelo estúdio em diversos departamentos e sem medo de errar. O humor quase assume a galhofa e a fantasia ocorre em um nível de total absurdo. Mesmo os momentos emotivos e sentimentais descambam propositadamente para a pieguice, o que funciona dentro do contexto proposto. A paleta cromática adotada aproxima mais a trama de um tom cartunesco, das páginas de uma graphic novel. Já a trilha sonora acertada, composta de diversos clássicos dos farofeiros Guns N’ Roses, acentua a grandiosidade das sequências de ação e, assim como diversos mecanismos visuais e narrativos utilizados ao longo da produção, está lá para dizer ao público que este não é um filme que deve ser levado demasiadamente a sério. Bem montado, o longa jamais perde o ritmo ou chega a ponto de enfadar o espectador. Muito pelo contrário, Thor: Amor e Trovão diverte do início ao fim.

O retorno de Natalie Portman é a constatação de que a Marvel deveria ter valorizado mais a personagem desde o início. Além de cientista brilhante, que estampa capas de diversas publicações no segmento em que atua, Jane também se destaca como uma ótima heroína de ação. Waititi interpretando Korg (o alienígena de pele rochosa) é puro deleite. Inclusive, o fato de ser este o personagem a narrar as lendas do poderoso Thor, de modo a situar o público quanto a eventos da vida do herói (ao invés de usar a defasada técnica de flashbacks básicos) é outro dos artifícios que funciona muito bem e corresponde ao estilo e estética do longa. Gorr é interpretado por um extraordinário Christian Bale com uma caracterização assombrosa e abusando de trejeitos e caretas. Quanto a Chris Hemsworth, o ator se mostra cada vez mais confortável no seu personagem e ainda se divertindo muito, mesmo após onze anos no papel.

A Marvel Studios foi certeira ao estabelecer uma fórmula responsável por consagrar a grife nos cinemas, fazendo com que o público sempre retorne às salas multiplex para conferir suas novas empreitadas – seja por hábito; para não se perder na cronologia; por fanservice ou para caçar easter eggs. Para o público em geral, os longas da casa se tornaram garantia de entretenimento saudável e divertido, o que, por sua vez, garante retorno ao estúdio com produções que sempre se provam lucrativas nas bilheterias. Mesmo os exemplares mais frágeis do MCU são carregados de boas intenções. E, ainda que alguns lançamentos de filmes solo de personagens soem como pura questão mercadológica a princípio, pois não acrescentam muito ao todo e ficam bem aquém dos grandes crossovers como Vingadores: Guerra Infinita (2018) e Vingadores: Ultimato (2019), não tem como acusar a Marvel de caça-níquel quando ela emula o universo dos quadrinhos, fazendo o que sempre fez em sua mídia de origem: lançando aventuras solo triviais protagonizadas pelos heróis da casa, que existiam apenas para preparar o terreno para que todo o time se reunisse futuramente em uma grande e marcante saga.

Isso fez com que a Marvel aderisse ao chavão seguro “em time que está ganhando não se mexe”, produzindo longas com estéticas, temáticas, formas e conteúdos que não se diferenciam muito uns dos outros. Mas com Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (2022), graças a um diretor como Sam Raimi, tivemos a oportunidade de ver um filme quase autoral. Agora, com Thor: Amor e Trovão, vemos que o estúdio se permitiu ousar e fugir um pouco da zona de conforto, graças a um cineasta audaz como Taika Waititi. Vamos torcer para que estes não sejam pontos fora da curva e que a Marvel nos proporcione experiências cinematográficas futuras cada vez menos básicas e mais ousadas.

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Doutor Estranho no Multiverso da Loucura

Fantasia sombria dirigida por Sam Raimi alcança a proeza de ser uma das raras produções autorais do MCU

Texto por Andrizy Bento

Foto: Disney/Marvel/Divulgação

Certamente um dos personagens mais interessantes dos quadrinhos da Marvel, Doutor Estranho iniciou sua incursão cinematográfica em 2016, como protagonista de um longa eficiente, engenhoso e que, se não alcançava todo o seu potencial no quesito fantasia, pelo menos vislumbrava as instigantes e insanas possibilidades que o personagem poderia vir a explorar em aventuras futuras. Nele, Stephen Strange (Benedict Cumberbatch), um arrogante e milionário cirurgião, sofria um grave acidente de carro e rapidamente ia perdendo tudo o que considerava importante e essencial em sua vida: seu talento, sua profissão, seu dinheiro e seu amor. Recomeçava do zero, abrindo mão do ceticismo para explorar um caminho incerto e no qual jamais acreditaria existir antes de sofrer o acidente: o universo da magia.

Convertido em mago, Strange se reinventou – e não me refiro ao fato de se transformar em super-herói e lutar ao lado dos Vingadores. Reinventou-se como ser humano, conhecendo o valor do altruísmo e tendo ciência de que deveria estar disposto a correr riscos e enfrentar sacrifícios em busca de um bem maior. Tanto é que, em Vingadores: Guerra Infinita, ele é o responsável pela decisão que encerra o filme de maneira agridoce, mas que embasa todo o enredo do filme posterior, o megahit Vingadores: Ultimato.

E concluímos que Strange estava certo. Depois disso, continuando sua bem-sucedida carreira em outras mídias além das HQs, Estranho protagonizou um dos melhores, se não o melhor episódio da série animada What If…?, produção da Marvel Studios para o Disney+. O episódio serviu, dentre outras coisas, para atestar a sua posição em meio ao panteão de heróis que integra. Ele é, de longe, um dos personagens que mais possui conflitos internos, tanto com seu lado humano, quanto com o lado mago. Emblemático para uma companhia como a Marvel, que sempre explorou a dicotomia e os limites entre a humanidade e o super-heroísmo, entre a ciência e a magia.

Seis anos após estrear nas telonas, o Doutor Estranho finalmente ganha um segundo filme solo que não se dedica a ser apenas uma sequência do original ou uma aventura trivial de fim de semana. Mas, sim, um título que vai além da cartilha Marvel seguida por quase todas as outras produções solo do MCU, enveredando por gêneros que ainda não haviam sido trabalhados às obras da casa e apresentando easter eggs que não estão lá por puro fanservice, mas de modo a conectar de maneira orgânica e genuína os diversos elementos e narrativas espalhadas ao longo do universo estendido da Marvel – quecompreende não apenas os longas feitos para o cinema como também as produções televisivas. Isso sem contar as referências aos filmes realizados antes mesmo do início do MCU, levados às telas por outros estúdios e distribuídos por outras companhias, como a Sony e a Fox. Lógico que estou falando de um certo teioso, de uma galera de mutantes e de um grupo que se reúne no edifício Baxter…

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura (Doctor Strange in the Multiverse of Madness, EUA, 2022 – Disney/Marvel) é uma fantasia sombria dirigida por Sam Raimi, o mesmo que marcou a vida de tantos marvetes com os filmes do Homem-Aranha produzidos pela Sony entre os anos de 2002 e 2007 e protagonizados por Tobey Maguire. Nesta trama, Strange acorda de um pesadelo que soa muito real e se prepara para um casamento. Em um incidente durante a cerimônia, descobre que a figura que permeia seu pesadelo existe em sua realidade.

America Chavez (Xochitl Gomez) é uma adolescente que possui a estranha habilidade de viajar por multiversos, acessando diferentes realidades por meio de portais. Contudo, o poder somente se manifesta quando America se vê em uma situação de risco iminente, como se o medo fosse o catalisador para o despertar de sua habilidade. Strange decide procurar a ajuda de alguém que entende de multiversos para auxiliar a garota, a reclusa Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen), que ainda não se curou completamente do luto após a perda de sua família. O que Strange nem poderia desconfiar é que a grande antagonista de seu pesadelo é a própria Wanda, que pretende roubar os poderes de America a fim de recuperar o que a sua realidade lhe roubou, acessando um universo em que ela vive feliz ao lado de seus filhos.

Como uma fã que aprecia os filmes do MCU e se diverte assistindo a eles no cinema (e ao mesmo tempo reclama e sente falta de um diretor que imprima seu estilo e assinatura nas produções), digo que o Estranho não podia estar em melhores mãos. Raimi faz um trabalho bem satisfatório, flerta com elementos de terror – lembrando que o cineasta tem uma vasta e excelente experiência com produções do gênero, coroadas com aquela deliciosa aura de filmes B – e compõe sequências de ação vertiginosas amparadas por um CGI respeitável e eficiente. O resultado é um filme tão deslumbrante quanto aterrorizante, que sabe dosar de maneira genuína humor, drama, ação e suspense. Óbvio que aqui e ali a gente consegue enxergar as impressões digitais de produtor Kevin Feige, presidente da Marvel Studios, mas não dá para remover a autoridade de um cineasta tão criativo e dono de suas narrativas como Raimi.

Doutor Estranho no Multiverso da Loucura se destaca como um dos raros filmes autorais do Universo Cinematográfico da Marvel. Ok, talvez, a colocação seja um pouco exagerada. Entretanto, é, de fato, um sopro de alívio ver um filme da casa onde a assinatura do diretor fica tão evidente, distanciando completamente o longa daquilo que chamamos de “filme de produtor” e que é um termo tão comum quando se trata de Marvel Studios. Dá para curtir a história  sem ter assistido a todas as produções que os fãs, energicamente, se dispuseram a elencar em fóruns e redes sociais, alegando ser imperativo conferir todas elas antes de se aventurar pelo Multiverso da Loucura? Lógico que dá. O longa funciona independente disso. Claro que se você ao menos conhecer previamente alguns dos elementos abordados aqui, a sessão será mais divertida. E se você tiver, de fato, assistido às outras produções, a experiência se torna ainda mais rica e gratificante – pois é uma delícia pescar as referências quando elas fazem sentido no todo, não tendo sido incluídas no roteiro apenas para agradar aos fãs. Porém, não se preocupe. Há diálogos e cenas expositivas o suficiente que elucidam o que é, por exemplo, o Darkhold e quais são as motivações de Wanda Maximoff, aqui definitivamente uma Feiticeira Escarlate.

Em um clímax quase constante, contando com participações especialíssimas capazes de deixar os fãs do Universo Marvel agitados e mal se contendo na poltrona do cinema (mais a trilha sonora deliciosa de Danny Elfman), Doutor Estranho no Multiverso da Loucura ainda apresenta montagem assertiva, efeitos exuberantes e uma maquiagem digna de nota. Conta com momentos assustadores, mas ainda assim é indicado para todos os públicos. Eis o toque de gênio de Sam Raimi, que incorporou ao longa do Estranho toda a sua expertise em cinema de terror e suspense, além da experiência acumulada na direção de filmes de super-heróis de teor mais familiar e emblemáticos de uma geração.

Cenas bizarras dividem espaço na tela com arcos de redenção típicos de cinema de entretenimento. Sequências de ação pirotécnicas são inseridas em uma narrativa que foca especialmente na evolução dos personagens, por quem diretor e o roteirista, Michael Waldron, parecem nutrir um imenso carinho. Raimi, aqui, é o verdadeiro mago. Sem subestimar a inteligência do público, contando uma boa história, dispondo de toda a galeria de recursos que o gigante estúdio generosamente oferece, Doutor Estranho no Multiverso da Loucura é uma produção deliciosa que respeita os marvetes e os fãs de entretenimento cinematográfico de qualidade.