Music

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá – ao vivo

Turnê com repertório mais suave baseado em dois discos da Legião Urbana se encaixa bem em um teatro de Curitiba

Texto e foto por Abonico Smith

Primeiro elemento: ar. Confissão, entrega, espelho. Segundo: água. Amor, relacionamento, self. Terceiro: terra. Grandes êxitos. Quarto: fogo. Luta, mudanças, política. Na sequência dos quatro elementos da natureza dispostos em uma linha contínua, o complemento do ser humano. Quinto, então: espírito. Só o amor salva.

Foi seguindo esta continuidade que foi montado o repertório da nova turnê de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que desde 2015 percorrem o país todo celebrando as canções (que ajudaram a conceber) da Legião Urbana (banda da qual participaram ativamente e fizeram parte da formação fonográfica clássica). Legalmente não podem utilizar o nome. Mas, afinal, quem que é fã se importa? Por onde passam eles carregam velhos e novos admiradores que estufam o peito, cantam alto e em uníssono tudo de cabo a rabo e celebram hits e lados b do quarteto/trio que saiu de Brasília em meados dos anos 1980 para se tornar uma das marcas mais pungentes do rock brasileiro.

Nos dias 25 e 26 de agosto último de Dado, Bonfá, o vocalista convidado André Frateschi e os outros que compõem o competente trio de apoio dos instrumentistas passaram novamente por Curitiba – justamente a primeira capital, que lá nos idos de 1985, bancou a primeira passagem de avião da Legião para tocar fora do Rio de janeiro, onde o grupo já havia gravado o primeiro álbum e estabelecido moradia. A turnê se chama As V Estações, batismo que condensa os nomes do quarto e do quinto álbum da carreira (respectivamente As Quatro Estações e V, lançados em 1989 e 1991), que fornecem a base para a maior parte do atual set list. Ambos são justamente trabalhos que marcam uma transição profunda na trajetória da banda, então reduzida a trio com a saída do baixista Renato Rocha. A intensidade das letras compostas por Renato Russo para a ser mais reflexiva, quando não bastante melancólica. Foram a passagem para a maturidade sem volta do mundo adulto. Saíam de campo o perfil de rapaz punk pós-adolescente para dar lugar às angústias, responsabilidades, cuidados e outras coisas que vêm junto com os trinta anos. Também foi o período em que o vocalista assumiu publicamente ser gay e descobrir ser HIV positivo. Naquela virada dos anos 1990, sempre é bom lembrar, a sexualidade ainda era um assunto para lá de tabu na mídia e na sociedade brasileira.

O que justifica a costura temática deste repertório de 22 músicas da Legião Urbana. Por isso a apresentação no Teatro Guaíra, um local mais recatado e conservador do que uma casa noturna, caiu bem para esta terceira vinda de Dado e Bonfá como Dado e Bonfá. Quase nenhuma presença do repertório politizado mais explosivo. Clássicos como “Que País é Esse”, “Geração Coca-Cola”, “Perfeição”, “Fábrica” ou  “Baader Meinhof-Blues” foram estrategicamente colocados de lado desta vez. Nada de arriscar acender qualquer pavio de polarização política na plateia – ainda mais em se tratando de uma cidade que claramente (ainda) pende para o lado perdedor da última eleição presidencial. A questão ali, naquelas duas horas de show, era celebrar a comunhão do eu com o ambiente e o mundo ao redor. O espírito com o ar, a água, a terra e o fogo. Não a faísca para que o vermelho pudesse se chocar e gerar grandes atritos com o verde-e-amarelo – embora Frateschi tenha sido bastante aplaudido e incensado ao mudar sorrateiramente dois versos para incluir referencias a questões políticas atuais (“Não boto bomba em Congresso Nacional”, em “Faroeste Caboclo”, e “Somos soldados vendendo joias”,  em “Soldados”).

As Quatro Estações e V  têm uma coisa em comum: são dois trabalhos que solidificaram a formação de trio da Legião e, por terem vindo na sequência de um período de muitas turbulências, serviram para colocar a banda nos trilhos e aquietar um pouco as coisas depois do estouro comercial e de toda a confusão vivida em 1988 no estádio Mané Garrincha, em Brasília, em uma frustrada “volta para casa após o sucesso”. No primeiro, a predominância do amor como a temática principal das canções se junta a citações do livro Tao Te Ching, da Bíblia, da literatura de Luís de Camões e a afirmação de que o caminho é um só. Fala sobre doença, aids, ditadura militar e morte mas procura trazer uma visão positiva no final. Já o posterior teve seu período de concepção abalado pelo confisco do governo Collor mais a descoberta do vírus HIV e um período de rehab de Renato. Isto se refletiu nas canções, mais lentas, sombrias, extensas e com um quê de rock progressivo, inclusive com referências à mitologia, natureza e temas que habitam o universo dos jogos de RPG e filmes/livros de fantasia.

Nove canções de As Quatro Estações, cinco do V. O que significa espaço restrito para o repertório dos outros discos. Muitos “lados B” (vale lembrar que o quinto álbum não teve single trabalhado nas rádios nem videoclipe feito para a MTV) e poucos hits. A sobra ficou para oito clássicos que não podem faltar em um show do grupo: “Faroeste Caboclo”, “Será”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Soldados”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer” e “Por Enquanto”. Canções que até hoje vivem sendo executadas em playlists radiofônicos, para o deleite dos mais velhos, e requisitadas nas demandas dos streamings dos mais novos. Esta configuração faz com que a atual turnê seja um pouco diferente das duas anteriores, dedicadas aos álbuns que fizeram a Legião Urbana, entre 1985 e 1988, explodir em onipresença nas rádios nacionais voltadas para o público jovem daquela época, quando o rock reinava soberano no mercado fonográfico nacional e ainda não havia sido solapado pela música sertaneja e pelo pagode.

Por ter um set list mais soft que as turnês anteriores, ter a ambientação em um teatro caiu bem para As V Estações. Poltronas para o público sentar em momentos de menor agito, horário camarada para uma noite de muito frio  em Curitiba (não era nem onze e meia da noite e o concerto já havia acabado). Telão de fundo com vídeos ilustrativos (e/ou abstratos) podendo ser bem visualizado de qualquer lugar. Boca de cena grande o suficiente para garantir boas performances de Frateschi e Dado (que chegam a encenar uma emocionante luta no intenso final de “Soldados”).

“Esta é a primeira vez que a gente levando esse show a um teatro”, comentou Dado em um determinado intervalo entre duas canções. Sinal dos tempos. O rock, gênero musical que nasceu da insatisfação e da vontade de ruptura com o status quo social distanciou-se demais de seu magnetismo perante a juvenília. Para a maior parte da geração de vinte e poucos anos restaram os grandes festivais que misturam musicalmente alhos com bugalhos e se preocupam em ser acima de tudo uma experiência, não uma finalidade musical. Restou a curiosidade de tentar imaginar como o imprevisível Renato Russo se comportaria (e o que falaria ali nos seus famosos discursos afiados ao microfone) se ali estivesse em carne e osso. Ainda mais em se tratando da terra de esmagadora maioria defensora da direita.

Set list: “Há Tempos”, “Meninos e Meninas”, “Sereníssima”, “Eu Sei”, “Quase Sem Querer”, “Eu Era um Lobisomem Juvenil”, “Sete Cidades”, “O Mundo Anda Tão Complicado”, “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Por Enquanto/Heroes”, “Tempo Perdido”, “’Índios’”, “Será”, “Faroeste Caboclo/I Wanna Be Your Dog”, “1965 (Duas Tribos)”, “Soldados”, “Se Fiquei Esperando Meu Amor Passar”, “Quando o Sol Bater na Janela do Teu Quarto”, “Pais e Filhos” e “Monte Castelo”. Bis: “Metal Contra as Nuvens”. 

Music

Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá

Oito motivos para não perder a turnê que celebra os emblemáticos álbuns As Quatro Estações e V, da Legião Urbana

Texto por Abonico Smith

Foto: Divulgação

Há oito anos dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá voltaram a se encontrar em um mesmo palco. O motivo era nobre: comemorar os trinta anos de lançamento do primeiro disco, homônimo, da Legião Urbana. Juntaram mais alguns amigos para a banda de apoio e chamaram o ator e cantor André Frateschi para comandar os vocais. Não puderam, por questões judiciais, utilizar o nome da banda. Mas isso não impediu nem o sucesso nem a possibilidade de reconexão com novos e velhos fãs dos tempos de Renato Russo. A ideia inicial era fazer apenas vinte shows pelo país, mas os convites vieram e o total de apresentações teve de aumentar.

E a primeira turnê gerou, anos depois, a segunda, dedicada ao repertório dos dois álbuns seguintes: Dois (1986) e Que País é Este 1978/1987 (1988). Agora, depois da interrupção na área cultural provocada pela pandemia, chega a vez de uma nova empreitada. Neste ano, Dado, Bonfá, Frateschi e os mesmos músicos embarcam no projeto As V Estações, que reúne canções gravadas no quarto e no quinto álbum da discografia do grupo, então devidamente formatado como trio na época. Até omês de dezembro, a agenda de apresentações e viagens está cheia (informações sobre as cidades e dias você encontra clicando aqui). Neste fim de semana, dias 25 e 26 de agosto, a escala é em Curitiba, no Teatro Guaíra (ingressos e horários aqui).

Mondo Bacana dá a você oito motivos para você não perder esta terceira reunião celebratória dos músicos ainda vivos da formação fonográfica da Legião Urbana.

André Frateschi

Detratores podem até reclamar que tocar ao vivo as canções da Legião Urbana sem Renato Russo nunca será a mesma coisa. Bom, a mesma coisa não será mesmo, afinal o vocalista e letrista morreu em 1996. Só que também querer limitar a banda à existência de Renato é um pouco demais. Dado e Bonfá não só participavam também de todo o processo criativo das composições como também têm todo o direito de excursionar tocando o material de uma carreira que também a eles pertence. Então, o eterno fã confesso da Legião André Frateschi caiu como uma luva na posição. Ótimo cantor, ele está lá à frente dos músicos não para imitar Renato, mas para cantar e performar do seu jeito, sem deixar nada a dever tanto nos vocais quanto  nas performances.

As Quatro Estações

O quarto álbum da discografia foi concebido em um momento bastante delicado para a banda. Não bastasse toda a confusão ocorrida durante o show interrompido no Mané Garrincha, em Brasília, ainda havia as dificuldades internas: o rompimento com o baixista Renato Rocha, o bloqueio criativo de Renato Russo e a pressão da gravadora para, enfim, ter um material de composições após o estrelato repentino. Quando saiu, porém, As Quatro Estações foi o disco de libertação da Legião, a tal virada de página definitiva do underground. Emplacou diversos hits nas rádios e consolidou de vez a banda como um trio de sonoridade mais diversificada que a aquela banda lá do início ainda nem tão distante assim.

“Há Tempos”

Faixa inicial de As Quatro Estações e a música que também abre a atual turnê. É um petardo direto e sem refrão, na qual Renato aborda tematicamente o lado escuro da aids, que muito abalou a juventude dos anos 1980 e viria, nos anos seguintes, a debilitar a sua saúde também. Com versos sombrios como “Parece cocaína mas é só tristeza” e “Há tempos são os jovens que adoecem”. Escutá-la, mesmo passados mais de trinta anos, tem o efeito de receber um feroz sopapo na cara em pouco mais de três minutos.

“Meninos e Meninas”

Em um disco com letras repletas de metáforas e códigos, talvez esta seja a canção mais objetiva escrita por Renato sobre a sexualidade. Se em títulos anteriores como “Daniel na Cova dos Leões” e “Soldados” faziam referências veladas sobre o fato de ser gay, aqui ele vai direto ao ponto: “acho que gosto de São Paulo, gosto de São João, gosto de São Francisco e São Sebastião/ E eu gosto de meninos e meninas”. Se hoje a música brasileira celebra a diversidade sexual (inclusive com Jão batizando uma música sua também como “Meninos e Meninas”), muito disso se deve a esta faixa, lançada em um período em que a juventude do país ainda estava bem distante para falar sobre sexo.

“Monte  Castelo”

Liturgia travestida de canção pop, com a Epístola de Paulo aos Coríntios se misturando ao soneto 11 de Luis de Camões e título que homenageia os pracinhas brasileiros que lutaram contra os nazistas na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Com o arranjo levado por pandeiro, violão e teclado, a faixa fica estrategicamente colocada ao final do set list, encerrando o show com leveza sonora e veia literária. Enfim, uma canção sobre o amor em um disco que versa, basicamente, sobre o amor em suas mais diversas formas.

“1965 (Duas Tribos)”

‘É o bem contra o mal/ E você de que lado está?”. De uma certa forma estes versos previram o us and them que dominou o território nacional durante o último desgoverno desses últimos anos. Só que esta canção chamava o Brasil, ironicamente, de “o país do futuro”, remetendo ao slogan da ditadura miltar e remoendo toda a herança de violência e podridão social que os militares queriam varrer para debaixo do tapete para enganar a população com falsos ordem e progresso. Não chegou a tocar na rádio após o lançamento do disco, mas tornou-se uma pérola escondida e uma das poucas faixas que vão bem além da temática do amor.

V

Quinto álbum da carreira, lançado em 1991, reflete o período mais barra-pesada vivido nos bastidores da banda. No final do ano anterior, a internação do vocalista e a descoberta de ser HIV positivo. O desgosto sociopolítico da Era Collor também respingava um gosto amargo no canto da boca. Por isso este não foi um álbum fácil. De compor, de gravar e depois de ser escutado. Faixas de longa duração, andamento lento, melancolia explícita. “O Teatro dos Vampiros”, “Vento no Litoral”, “Sereníssima” e “Metal Contra as Nuvens” são os destaques do repertório e estão no set list desta turnê.

Pentagrama

Este foi o símbolo escolhido para nortear a criação desse novo projeto. Frateschi explica: “os quatro elementos coordenados pelo espírito, uma linha contínua com cinco vetores, contam essa história: I AR (confissão, entrega, espelho), II ÁGUA  (amor, relacionamento, self), III TERRA  (superhits), IV  FOGO  (política, Brasil, luta, mudanças) e V ESPÍRITO  (Só o amor salva). Vivemos um momento de construção de novos caminhos, o amor como conselheiro, a integração do meio com o ambiente, o empenho em adiar o fim do mundo. Uma utópica quinta estação que trará novos e melhores dias”.