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Retrato de um Certo Oriente

Filme de abertura deste ano do festival Olhar de Cinema aborda a imigração de irmãos libaneses com inspiração em livro de Milton Hatoum

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: O2 Play/Divulgação

Foi dado o pontapé inicial de mais um Olhar de Cinema. A 13ª edição do Festival Internacional de Cinema de Curitiba segue até a próxima quinta-feira, com mostras nacionais e internacionais nos cinemas do Cinemark Mueller e do Cine Passeio. Uma das estreias nacionais da vez foi o filme de abertura do evento, Retrato de um Certo Oriente (Brasil, 2024 – O2 Play), adaptação livre do livro Relatos de um Certo Oriente, de Milton Hatoum.

O longa é um retrato da imigração de Emir (Zakaria Kaakour) e Emilie (Wafa’a Celine Halawi). Libaneses católicos, os irmãos fogem da guerra rumo ao Brasil para construir uma nova vida. No caminho, Emilie se apaixona pelo muçulmano Omar (Charbel Kamel), viajante costumeiro das águas intercontinentais. O roteiro, que toma o livro como ponto de partida, é assinado por Maria Camargo, Gustavo Campos e Marcelo Gomes, diretor da obra. Desde o início, coloca-se uma dificuldade: segundo declarou o próprio Milton Hatoum, durante a solenidade de abertura do Olhar, Relatos… é um “romance subjetivo feito para não ser filmado”. Ficou um longa-metragem que difere do material original, propõe-se noutra época, e resulta em uma abordagem intimista de transposição da letra à tela.

Retrato… tem uma narrativa linear, mas se recusa a precisar com exatidão o tempo histórico abordado. Essa ambiguidade é um triunfo do longa, que universaliza a condição dos refugiados e nos permite enxergar histórias como a dos palestinos e indígenas dos anos 1950, mas sem perder a capacidade de transpô-las às tragédias que esses povos sofrem na atualidade. Este exercício de alteridade é uma das dimensões principais do discurso do filme, que se coloca como porta-voz dessa multiplicidade de experiências migratórias.

Contudo, mesmo com seus matizes de filme-manifesto, Retrato de um Certo Oriente é um romance. Ao sair do Líbano, o casal de irmãos espera deixar tudo para trás e recomeçar a vida. Sozinha perambulando pelo navio, Emilie encontra Omar, que se aproxima e ensina português à conterrânea. É pela descoberta da linguagem que a relação entre eles se estabelece e é fortalecida. Sem abandonar o árabe, às vezes utilizando a língua francesa, escutando dialetos indígenas amazônicos e aprendendo o português, Emilie é introduzida a um mundo rico de multiplicidades. Seu modo de vida colide com estes a que é exposta, mas nunca com as amarras retraídas de seu irmão. Este, por sua vez, também ancora sua jornada no deslumbre com uma outra linguagem – a fotográfica. Sua relação, na borda entre a amizade e o romance, com o fotógrafo Dorner (Eros Galbiati) é um dos pontos altos da trama, em que Gomes explora melhor a sutileza da transposição e perpassamento entre as descobertas pessoais e linguísticas.

Sendo assim, fotografia, passado e memória ocupam posições simbólicas semelhantes e até idênticas. Os fotogramas unem a memória (no fotograma de família que abre o longa) à atualidade em um movimento que afirma também a memória do fotógrafo em questão (nas fotografias tiradas por Dorner e Emir que encerram a projeção). Aquilo do que se pretende fugir no que passou, por sua vez, é reafirmado na xenofobia de Emir, reiterando disputas ascendentes de intolerância religiosa.

O conflito religioso da tradição católica dos irmãos com a vida muçulmana de Omar nunca se resolve e configura um abismo intransponível entre as três personagens. No jogo imagético que Marcelo Gomes propõe, abusando dos desfoques em baixa profundidade de campo para estabelecer intimidades; e em sentido contrário, da nitidez como elemento de descoberta de paisagens, as relações são próximas, mas nunca perfeitamente conjuntas na mise-en-scène.

Esta gramática dos quadros é grande protagonista da direção de Gomes, cuja câmera aproximada de suas personagens é a intromissão do espectador na privacidade de seu desejo e aspirações. O intimismo e a subjetividade que Hatoum expressou como características não-filmáveis são transpostas nesse jogo, em que o desfoque representa a intimidade, acompanhada de uma dialética entre planos detalhe e planos abertos; lentes grande-angulares e telephoto, enquadrando atores e atrizes em espaços confinados e molduras culturalmente carregadas em tela.

A narrativa é entreposta a momentos de poesia visual, com grandes dissoluções de elementos da natureza – evidências da unidade cosmológica que equipara larvas, árvores e humanos – ou planos estáticos do mar e dos rios amazônicos que, por sua vez, nunca estão parados. Por vezes, o mar é esperança, com reflexos na superfície que lembram o impressionismo de Monet; noutro momento, é monstro que urra junto à grandeza metálica do navio que o corta madrugada adentro. O rio e sua superfície pacata são de importância extrema para o simbolismo da narrativa.

Ainda, no andar da narrativa, é evidente a preocupação com a unidade estética dos planos e sequências por parte de Gomes e Pierre de Kerchove, diretor de fotografia da obra. O jogo de espelhos, aliado à tensão proposta entre o ruído analógico do papel-filme e a nitidez plástica da filmagem digital, geram uma mise-en-scène requintada, que nos convida a desvelar suas camadas.

É uma pena, contudo, que os planos bem arrojados deixam de lado um elemento central à fotografia em preto e branco: o contraste, que aqui é muito ausente e, quando aparece, se destaca com primor do restante da obra. As escalas de cinza são lavadas, e a iluminação naturalista pouco oferece a ressaltar a profundidade estética da obra, ao contrário do bom uso de elementos cênicos de primeiro plano e plano de fundo, que atuam como significantes do estado emocional das personagens com efetividade.

Assim, o Olhar de Cinema oferece uma abertura atinada aos conflitos sociopolíticos do tabuleiro global, e aposta em uma narrativa convencional para ecoar sua mensagem, ainda que se permita um ou outro momento de contemplação estética. Esta curadoria, que é sempre interessada no caminhar do mundo, na celebração da diversidade como matéria fílmica e da alteridade como polifonia discursiva, mostra a que veio desde o primeiro minuto de projeção.

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