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Disfarce Divino

Filme francês discute o gênero na igreja católica abordando tabus acerca da sexualidade secreta de um padre que acaba de morrer

Texto por Abonico Smith

Foto: Bonfilm/Divulgação

Há muito mais mistérios entre o céu e a Terra do que sonha a nossa vã filosofia. Disso muita gente ja sabe. A famosa frase de Hamlet, clássica obra de William Shakespeare, cai como uma luva para a igreja católica, aliás. Ao menos para a cúria de Paris. Sobretudo para Charlotte Rivière, chanceler da instituição, chamada logo no início do filme para resolver uma questão primordial envolvendo a morte do padre Pascal. Assim começa a se desenrolar a trama de Disfarce Divino (Magnificat, França, 2023 – Bonfilm), longa dirigido e corroteirizado por Virgine Sauveur que esteve na programação do Festival Varilux do ano passado e que agora, nesta quinta-feira propicia para a temática, a da Corpus Christi, retorna às salas brasileiras.

O que Charlotte nunca desconfiou que um dia poderia saber era a possibilidade de um padre e bastante conhecido em sua comunidade ter um corpo feminino. Seios e vagina, componentes anatômicos não permitidos para a ordenação e o sacerdócio. Chocada e perplexa, ainda mais por ter sido chamada in loco pelo legista para assinar o atestado de óbito, o que ela teme é que a informação possa vir a se tornar pública de algum modo e o nome dela acabe envolvido em um grande escândalo em torno de algo do qual ela não fazia a mínima ideia.

O monsenhor designa uma investigação sobre o ocorrido. O comando pertence a um outro padre, mas, inquieta e insatisfeita, Rivière (Karin Viard) vai além e promove por conta própria uma busca obcecada pelo passado de Pascal, atrás e informações e conversas com quem o conhecera ou convivera com ele durante a infância, adolescência, juventude e até mesmo vida religiosa.

Assim começa a se desenvolver uma interessante questão acerca do gênero na igreja católica. Será que já não seria hora do Vaticano permitir o sacerdócio também para mulheres? Seria essa história um caso de transexualidade escondido sob a batina? Ou, então, alguém teria se apossado da identidade de Pascal sem que ninguém soubesse? Se sim, o que teria acontecido com o verdadeiro garoto pobre, quieto e criado uma mãe de adoção? Por que o falecido padre tinha veneração pelo Magnificat, o cântico entoado por Nossa Senhora em exaltação à grandeza de Deus e que narra as Sagradas Escritura, depois de ter a notícia da gravidez de Jesus Cristo? Surge ainda, uma grande pergunta herética: seria a Virgem Maria mesmo virgem quando isso aconteceu?

Enquanto se esforça para os descobrir fatos que possam trazer respostas para o mistério, entretanto, Charlotte se depara com percalços. Em primeiro lugar, existe o telhado de vidro. A cinquentona solteira se esforça para desvendar um tabu enquanto mantém outro em casa: a insistência em negar a Maxime, o filho de 15 anos, problemático na escola por causa do bullying sofrido por ser constantemente chamado de bastardo, as informações a respeito sobre quem seria o seu pai que nunca conhecera ou aparecera em casa. Também encontra dificuldades dentro da própria sala do monsenhor, que não pensa duas vezes em adverti-la por “estar indo longe demais” em sua investigação, que pode trazer alguma brecha alheia para que o segredo do cadáver de Pascal, devidamente cremado após o óbito para não dar margem a qualquer exumação posterior, escape do controle de abafamento do caso por parte da igreja.

Desafiando questões dogmáticas e tratando de abordagens espinhosas, Disfarce Divino mostra-se mais uma interessante obra da safra mais recente vinda da laica França a aterrissar por aqui em circuito de cinemas abertos a filmes não blockbusters. E, o mais importante, sem medo de trazer uma história fictícia que pode vir a incomodar muita gente que leva mesmo a ferro a fogo o que sua religião diz. Cutucar, questionar e não apenas entreter também são atributos do cinema.

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