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Tudo o que Você Podia Ser

Longa-metragem mineiro de estética que flerta com o documental aborda como o dia a dia trans pode ser repleto de afeto e carinho

Texto por Abonico Smith

Foto: Vitrine Filmes/Divulgação

Composta pelos irmãos Márcio e Lô Borges,  “Tudo o que Você Podia Ser” é a  faixa de abertura do clássico álbum Clube da Esquina, com interpretação de Milton Nascimento. A letra fala de sonhos almejados e algumas conquistas não obtidas mas, sobretudo, de muita luta e perseverança para ir atrás do que se quer. Meio século depois o título vai como uma luva no novo longa-metragem que ocupa, a partir deste mês de junho, dedicado à celebração da diversidade sexual e do orgulho LGBTQIA+, a faixa Vitrine Petrobrás de exibição em salas de mais de vinte cidades mineiras. E detalhe: um a produção mineira, rodado em Belo Horizonte, feita por e com artistas locais.

Tudo o que Você Podia Ser (Brasil, 2023 – Vitrine Filmes) aborda o cotidiano de quatro amigas belorizontinas que se encaixam no espectro que reúne trans, travestis e pessoas não-bináries. Com direção de Ricardo Alves Jr e roteiro de Germano Porto, o filme aborda, com muita simplicidade, o dia a dia das personagens interpretadas por Aisha Brunno, Bramma Bremmer, Igui Leal e Will Soares, cujas histórias contadas na tela (e também seus nomes) acabam se misturando tanto com a realidade que os créditos dos diálogos também são creditados ao quarteto vindo do teatro da capital mineira. Ali, em cena, abordando a simplicidade do dia a dia de todas elas – seus sonhos, objetivos dificuldades, experiências de vida – durante os últimos momentos da mais velha delas na cidade, já que ela embarcará para uma viagem e quer curtir ao máximo os últimos momentos de afeto com as pessoas do seu coração.

E é justamente na questão do afeto que reside o grande trunfo do filme. Primeiro porque demonstra que questões referentes à identidade queer também podem ser encaradas de boa no seio da família, sem derrapar para preconceito e não aceitação. E o filme também mostra que transexualidade e não binariedade podem muito bem rimar com situações cotidianas absolutamente comuns para o lado cisgênero, como estudos avançados (uma das personagens relata que acabou de ser aceita em um curso de doutorado na Alemanha), visita a um sobrinho recém-nascido, escolha de roupas para doação, um mero jogo tipo verdade ou consequência, preparação para a balada ou mesmo a larica da madrugada numa lanchonete de rua. A principal bandeira aqui é fazer cair por terra aquela imagem de que uma vida trans, por mais perrengues que possa vir a ter, precisa vir encharcada em tintas soturnas, escondida na marginalidade ou conflituosa na sordidez.

Aí que entra outro trunfo do longa, menos perceptível para o espectador que não decodifica muito a linguagem do cinema. Cheia de improvisações e naturalismo de imagens, a ficção de Tudo o que Você Podia Ser beira a aparência documental, também, de certa forma, flertando com o gênero. De vez em quando a câmera treme, vai buscar alguém que está completamente fora do início daquela cena e se permite colocar na situação de que nem tudo está no controle do diretor, roteirista e, sobretudo, do diretor de fotografia.

Os abraços, beijos, carinhos e afetos transmitidos por e entre Aisha, Bramma, Igui e Will representam o poder social desta produção, tão necessária para o levante LGBTQIA+ que invade nossas artes trazendo a representatividade e diversidade dos dias atuais. Que venham mais obras cinematográficas neste sentido.