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O Canto das Margaridas

Filme independente pernambucano registra a manifestação que busca dar visibilidade, em Brasília, à luta pelos direitos das mulheres no mundo rural

Texto por L. L. de Ofélia

Foto: Divulgação

O filme político suscita uma precaução: evitar, no movimento crítico, tomar o posicionamento da obra face ao que filma como característica estética – ele é um fato extrafílmico, embora incida no modo como a matéria política é estetizada. Este afastamento, que pretende-se defender aqui, age como uma forma de engajamento estético que não afasta a política, mas que tenta integrá-la e potencializá-la na arte.

O Canto das Margaridas (Brasil, 2024), assinado pelo Coletivo Mulheres no Audiovisual de Pernambuco, registra a edição de 2019 da Marcha das Margaridas – manifestação feita a cada quatro anos na Esplanada dos Ministérios e que busca visibilizar a luta pelos direitos das mulheres no mundo rural, especialmente. Seu nome remete a Margarida Alves, líder e pioneira sindical e camponesa assassinada em 1983. Apesar do simbolismo e da força que carrega seu nome, seu fim trágico é mais um dos crimes políticos e de ódio cujas atas do processo e da investigação empoeiram-se nos arquivos do sistema judiciário-policial do país.

A obra foi exibida na mostra Foco: Cinema de Luta, durante esta edição do festival Olhar de cinema, em Curitiba. Nela, acompanhamos dois grupos de manifestantes pernambucanas, algumas novatas, outras já veteranas da Marcha que ocorre desde 2000. Nos 80 minutos de filme, o movimento da produção é ternário e estritamente linear: ida, ato e volta. São três também, a grosso modo, os ambientes retratados: os ônibus, o local onde se reúnem as manifestantes na capital e suas ruas. Também são três os pontos focais através dos quais se desenvolve a obra: depoimentos variados das militantes, músicas entoadas por elas e momentos silenciosos de detalhes e da estrada.

Não obstante, a atmosfera criada é a mesma durante toda a duração – camaradagem e alegria predominam. Essa homogeneidade tonal conforma o modo de gravação. A câmera na mão e a captação direta de áudio nos imergem no instante, dominam o total da quase uma hora e meia (salvo raras exceções de disjunção imagem-som, partes um pouco mais fortes, mas que são rapidamente esquecidas) e indicam um apagamento de intenção autoral: a obra está a serviço do movimento político.

Ainda que se possa lamentar isso como um desperdício de potencial (compartilhado por qualquer filme), já de saída o interesse na matéria política registrada é traído. A montagem neutraliza qualquer potência dos discursos das militantes – suas histórias pessoais (que deveriam compor a unidade de voz do filme, segundo uma das diretoras) são justapostas tão rapidamente que se anulam emocionalmente, são como pequenos excertos que não encontram uma costura possível entre si. O mesmo ocorre com os cantos que, desajustados entre si, não canalizam os sentimentos quase contraditórios (por isso mesmo ricos em si) de revolta política e de alegria de estar com as suas: a repetição conduz à anulação.

A marcha em si, momento evidente de clímax, é toda gravada na altura dos olhos, com som direto e uma rapidez de corte que impede a leitura das faixas e a compreensão das falas. Tudo ocorre como se fossem lembranças já por demais apagadas. A sensação é tão neutra que o filme precisa da avaliação das próprias militantes para esboçar a grandiosidade do momento – ela não está no reino do visível, o registro é inutilizado na construção desleixada, fechada e desfocada. Na volta a Pernambuco, um plano chama atenção: uma das manifestantes gravou com o celular (um leitmotiv que expressa a união com aquelas mulheres que não conseguiram ir e ficaram em suas cidades) a vista do ato de cima de uma ponte. Este plano, sozinho, tem maior inventividade que todo o filme: é vista a disposição espacial da manifestação, sua existência temporal no o ritmo dos passos, no flamular das faixas e bandeiras.

A dispersão e a falta de contraponto – emocional, político, estético – envenena qualquer início de compreensão ou engajamento para com o movimento: a curiosidade é barrada pela obra, sua falta de interesse é proporcional à própria aceitação irrefletida do que se grava: escusa-se uma obra tediosa pela simpatia com as perspectivas de esquerda. Talvez devesse ser o contrário: quando a luta gravada é digna, deve-se também lutar, formalmente, contra ela, pois a mesma sempre resistirá ao avanço e aparecerá, por isso, maior. A apologia é o fim do engajamento; não dá vazão à dialética, à contradição e ao conhecimento; encerra no unidimensional a complexidade inerente ao ato social.

Observação: foi necessário pesquisar por fora as informações sobre as Margaridas contidas aqui. Não saí do filme sabendo mais sobre ela do que quando entrei.