Movies, Music

Bob Marley: One Love

Cinebiografia foca em período turbulento do maior ícone do reggae mas peca em não ousar mostrá-lo além da já consagrada fama mundial

Texto por Abonico Smith

Foto: Paramount/Divulgação

Desde que o Queen rompeu a barreira das cifras astronômicas das bilheterias que cinebiografias de ídolos planetários da música pop vêm sendo preparadas em série pelos grandes estúdios na tentativa de colar no vácuo e garantir outros bons resultados financeiros às custas dos amantes de canções que marcaram a história do rádio e da televisão antes do consumo no mercado fonográfico ganhar uma nova ordem em plataformas online. Elton John, David Bowie, Aretha Franklin, Whitney Houston, Elvis Presley, Amy Winehouse, Michael Jackson, Madonna: grandes astros do mundo dos discos já chegaram às telas (de cinema e de streaming) ainda deverão chegar daqui a algum tempo.

Nesta semana é a vez do homenageado da vez na sétima arte ser o cara que conseguiu furar a bolha socioeconômica que quase sempre separou o terceiro mundo da fabricação de estrelas musicais vindas do eixo formado entre América do Norte e Europa. Bob Marley: One Love (EUA, 2024 – Paramount) chega aos cinemas para mergulhar na intensidade dos anos finais de vida do jamaicano que virou sinônimo eterno de reggae, gênero que ajudou a exportar ao mundo inteiro nos anos 1970 depois de iniciar, na década anterior, carreira precoce na capital Kingston com embriões como o ska e rocksteady. O foco aqui está em toda a turbulência compreendida entre 1976 e 1978.

Tudo começa com a polarização política que levava a toda a ilha caos, violência e terror. Nos bastidores de uma apresentação organizada por Bob para tentar celebrar um momento de paz e união que fosse, sua casa/estúdio é invadida por terroristas que disparam dezenas de tiros contra ele, a esposa Rita e integrantes de seu estafe. Isto leva o artista a um autoexílio na cidade de Londres, onde fica a sede da gravadora Island, que desde 1974 já faturava à beça lançando seus discos no mercado europeu. Lá, longe da esposa Rita (que se recupera das balas recebidas e opta por levar os filhos para passar um tempo com a vó residente nos Estados Unidos), Marley concebe o álbum Exodus, considerado por muita gente um dos maiores momentos de sua carreira (com hits como “Jamming”, “Three Little Birds”, “Waiting In Vain”, “Exodus” e “One Love”) e que traz em suas letras um reflexo do momento vivido por ele desde o atentado. O recorte termina em 1978, período marcado por dois momentos: a descoberta de um câncer de pele que viria a tirar sua vida em 1981, aos 36 anos de idade, e o retorno à Jamaica para mais um show triunfal, no qual levou ao palco os dois maiores rivais políticos do país e os fez dar as mãos em sinal de paz. No meio disso tudo, alguns flashbacks expertos da vida do jovem Bob: a época em que ele e Rita se conheceram melhor e começaram a ficar juntos, a tensa performance que resultou na conquista do primeiro contrato assinado para um disco, a criação do clássico “No Woman No Cry”, a pregação da cultura e filosofia rastafári, que acabaria por tornear toda a sua vida posterior. A base disso tudo é o livro biográfico assinado por Rita e com edições nacionais datadas de 2004 e 2020.

Dirigido por Reinaldo Marcus Green (mais conhecido do grande público por uma outra cinebiografia anterior, a do pai das irmãs tenistas Serena e Venus Williams) e roteirizado pelo próprio Green e outras seis mãos, a história de um Bob Marley já idolatrado na Jamaica e fora dela não foge muito da regra comum a outras recentes biografias: caracterização impecável, cuidado extremo na parte da reprodução sonora fidedigna e uma vontade tão grande de agradar musicalmente aos fãs que pagam o ingresso que isso acaba se tornando bem mais importante do que o cuidado com o roteiro. Não que este derrape feio em dados históricos como o filme do Queen, por exemplo, mas também a narrativa se mostra muito acanhada aqui: pinta Bob Marley já como herói da música, mas não sabemos como ele chegou a este patamar. O ator britânico Kingsley Ben-Adir não só canta e fala igual ao cantor e compositor, mas também parece incorporar o espírito de Marley no gestual performático, no olhar e no jeito de ser longe dos microfones. Fica difícil não embarcar na transmutação ao olhá-lo nas cenas rodadas em Kingston e Londres. Só que isto é pouco para fazer do longa algo tão poderoso e revolucionário quanto a música do jamaicano (inclusive sua influência decisiva no punk rock da terra da rainha Elizabeth também é abordada bem pela tangente durante a projeção).

Dois detalhes podem explicar tudo isso: a voz e a presença constante de Ziggy Marley nos bastidores das filmagens, além de sua assinatura, ao lado de Rita e a irmã Cedella na produção executiva da obra. O filho do casal Bob e Rita esmerou-se tecnicamente em colocar o pai com perfeição técnica nas telas, sobretudo na hora das canções, você vê músicos profissionais da ilha atuando como os instrumentistas dos Wailers (inclusive Aston Barrett Jr, filho do baixista original do grupo, falecido agora, no início de fevereiro) e as três backings do I Threes. No arco romântico, a preocupação é mostrar a mãe como a eterna fiel escudeira de seu pai, tanto nos palcos e estúdios como na vida. As aventuras extraconjugais do astro surgem em breves pinceladas e o relacionamento de um ano com a Miss Mundo 1976 Cindy Breakespeare (com quem ele teve o filho Damian, nascido no ano seguinte em solo londrino) é praticamente apagado do roteiro.

A intenção de ligar o sobrenome Marley à união espiritual de uma família pode ser, enfim, a justificativa da escolha do hit “One Love” para servir de subtítulo ao longa, já que a faixa que encerra o lado B de Exodus aparece somente no início dos créditos finais. E justamente essa veia chapa-branca apaga um pouco do brilho do que poderia ser a primeira biografia musical de um ícone do reggae. A poderosa música de um país do terceiro mundo acaba ficando encaixotada na fórmula comercial imposta pela máquina hollywoodiana.