Francesa vai a Recife para superar a perda do pai e se entrega de corpo e alma a uma tórrida paixão por um jovem pobre da capital pernambucana
Texto por Abonico Smith
Foto: Pandora Filmes/Divulgação
Ter a capacidade de se regenerar é a única coisa que diferencia a salamandra de todo o resto dos vertebrados. O anfíbio também é uma criatura mitológica ligada ao fogo, por causa da crença de sua imunidade a ele. Muito utilizados na arte heráldica (de forte tradição europeia), os elementais do fogo receberam o nome de salamandras. Estão presente fisicamente nas chamas, nos vulcões, no sol, no calor dos corpos humanos. São avassaladores, destruidores, queimam os obstáculos que aparecem pelo caminho, inclusive servindo de purificação e eliminação de energias negativas. Por isso mesmo servem também como metáfora para ações impulsivas, principalmente a paixão.
A francesa Catherine é a representação metafórica do animal que dá título a Salamandra (La Salamandre, Brasil/Alemanha/França, 2021 – Pandora Filmes), longa-metragem de estreia do brasileiro Alex Carvalho, que depois de passar por vários festivais (inclusive o de Veneza, onde recebeu o prêmio de melhor filme na eleição da crítica) enfim estreia em circuito nacional. Depois de passar um bom tempo de isolamento social para cuidar de seu pai nos últimos meses da doença terminal dele, a parisiense desembarca em Recife, onde mora sua irmã mais velha, para passar um tempo e buscar um rumo para refazer sua vida. Mental, espiritual e profissionalmente.
Antes de prosseguir os comentários sobre o filme, é bom antecipar alguns dados sobre o livro do qual fora adaptado. Lançado em 2005, o romance foi escrito por Jean-Christophe Rufin, médico e escritor que, no final dos anos 1980, morou por um tempo na capital pernambucana como adido cultural do consulado francês. A costura central é a tórrida paixão da protagonista, uma “galega” loira e estrangeira com grana de família, pelo jovem Gilberto, pobre e preto, trabalhador explorado e maltratado pelo seu patrão, um branco local de família de posses. Sem conhecer limites algum e enfrentando tudo e todos, Catherine enfrenta problemas e preconceitos de tipos (sobretudo os de cunho moral, social e racial e a desaprovação da irmã Aude e o cunhado brasileiro Ricardo – interpretados por Anna Mouglalis e Bruno Garcia) para reinventar-se. Sempre contando com uma química incendiária entre os dois corpos. O alto teor sexual garante ao livro um grande impacto na imaginação de quem o lê.
Depois de ter ganho o livro de um amigo, Ale, radicado há muito tempo fora do Brasil, também se sentiu bastante impactado com a história, que vai bem além das questões do sexo e estende nas entrelinhas seus questionamentos ao abalo nas estruturas da sociedade local o relacionamento entre os dois personagens principais, que formam a representação da máxima de que, no amor, os opostos se atraem. Sobretudo, por ser justamente de Recife. Então, encarou o desafio de transformar a trama criada por Rufin em versão cinematográfica.
O que logo salta aos olhos é o trabalho da dupla principal do elenco. Marina Foïs se entrega literalmente de corpo e alma a Catherine. Sofre de maneira quieta (o que reforça o trabalho com os gestos e olhares) e segue firme e forte em sua resistência perante as dificuldades. Maicon Rodrigues (mais conhecido do público nacional pelos trabalhos em TV como a novelinha Malhação e a trama de época Nos Tempos do Imperador), por sua vez, arrasa como o extrovertido Gil, que supera a barreira da incomunicabilidade entre seu idioma e o da protagonista com extrema inteligência e desenvoltura. Juntos, possuem química assustadora. Na hora das cenas mais picantes, a combustão carnal é quase imediata.
Carvalho também se permite a ousadia de utilizar somente a luz disponível nas localidades onde rodou em Recife e na vizinha Olinda, abrindo mão dos habituais refletores cinematográficos. Isso deixou muitas cenas bem escuras, sem poder oferecer muito ao espectador, em determinadas ocasiões, a clareza necessária para distinguir objetos e até mesmo observar melhor o rosto dos atores. Pode-se traduzir como opção e assinatura estética, claro. Este é o ponto positivo, embora muita gente possa se sentir incomodada justamente por isso.
Salamandra possui apenas um grande defeito: o roteiro manco. Desenvolvido e assinado em parceria entre o diretor e outros dois roteiristas (Thomas Bidegain e Alix Delaporte), ele falha na supressão de detalhes importantes para a trama nas elipses temporais. Há de se prestar atenção fixamente no filme, por exemplo, para compreender que o real motivo da viagem de Catherine ao Brasil foi a superação o período de luto pela morte do pai. Traduzindo narrativamente a penumbra de muitas cenas, também não ficam muito claras determinadas condições que incendeiam a tortuosa relação entre Gil e o patrão. Este, Pachá (Allan Souza Lima), ainda, chega, em uma mesma cena e de uma hora para outra, a conversar bilingualmente com a francesa, que apesar do pouco tempo em solo brasileiro, já parece estar bem fluente e entendendo quase tudo em português.
Pesados prós e contras na mesma balança, vale muito a pena acompanhar este diálogo multicultural que permite o questionamento sobre o se sentir estranho/estrangeiro (vale lembrar que ambas as palavras em português podem ser traduzidas para uma única, stranger, em inglês) até mesmo em seu próprio país e colocar incógnitas sobre quem explora quem e seus motivos. Tão intenso quanto o fogo que arde pelos corpos de Gil e Catherine e a capacidade desta última de se regenerar com rapidez.