Music

New Model Army – ao vivo

Lendária banda do pós-punk britânico retorna a Curitiba 33 anos depois para mostrar o seu melhor em quase meio século de carreira

Texto por Abonico Smith

Foto: Daniela Farah

O tempo costuma ser um adversário duro para bandas de rock. Ainda mais em apresentações ao vivo. Quanto mais os músicos se distanciam daquela vitalidade da juventude que nunca mais voltará mais difícil parece ser reviver a velha chama performática que um dia encantou aquela geração que acompanhou, passo a passo, o seu crescimento artístico com primeiros discos potentes e que justamente estabeleceram aquela identidade musical que ficou cravada na mente e na história de muita gente. Por isso, quanto mais longa for uma carreira, maior a chance de que os shows sejam pálidas sombras daquilo que já foram um dia bem lá atrás. Mesmo hoje em dia, com a facilidade que a música digital possui em obter renovação e nova formação de plateia.

Justin Sullivan fundou o New Model Army num bem longínquo ano de 1980. Quase meio século atrás. Desde então, entraram e saíram músicos da formação mas a banda nunca interrompeu suas atividades de fato. Pode se vangloriar de ser um dos poucos espécimes coletivos no universo rocker a olhar e seguir sempre para a frente. Não deixando de lançar um punhado de músicas inéditas de tempos em tempos. Não deixando de subir no palco.

Neste início de junho, seis anos depois, o NMA voltou ao Brasil para rever seus fãs. Foram quatro apresentações em quatro datas consecutivas. Tudo bem corrido, noite após noite, como manda a cartilha do rock’n’roll desde sempre. A estrada manda e o encontro com novos ouvintes e velhos admiradores de muitos e muitos anos é sempre salutar. Com 68 anos de idade recém-completados, Sullivan parece bem entender disso e manter intacta sua alma de jovem de 20 e poucos.

Curitiba foi a segunda delas, na última sexta-feira, 7 de junho. Fazia 33 anos que o grupo não se apresentava na capital paranaense. A primeira passagem por aqui não resultou em boas lembranças por parte de quem estava lá. O local era improvisado (uma área voltada para a prática de skate chamada Coliseu, no bairro Rebouças) e o som ficou uma porcaria. Muito agudo na regulagem e sem aquele impacto vibrante costumeiro do que já eram desde o início as apresentações do NMA. Como o tempo também serve como senhor da razão e instrumento para que injustiças sejam corrigidas, nada melhor do que um retorno no melhor estilo “antes tarde do que nunca” e em local apropriado para se assistir a um concerto. E bem apropriado: o Jokers, ponto clássico para artistas underground com uma boa estrutura, um ótimo som e uma pista que, mesmo não sendo tão grande assim, abriga com carinho e conforto quem se dispõe a sair de casa e pagar pelo ingresso.

Por quase uma hora e meia Sullivan e seus fieis escudeiros que já o circundam há algum tempo (o guitarrista Dean White entrou em 1994, o baterista e ex-roadie Michael Dean em 1998 e o baixista Ceri Monger em 2013) entregaram uma apresentação vibrante tanto aos fãs que estavam naquela noite não muito feliz no Coliseu como aqueles que não passaram por esta experiência. Além de experiência e entrosamento não terem faltado, somou-se a esta noite a possibilidade do repertório acrescentar em sua metade inicial um punhado de canções mais recentes (quatro do recém-lançado Unbroken, de janeiro deste ano; uma de From Here, de 2019; e outra de Winter, de 2016). Isto é, a prova de que o NMA dos tempos atuais se conecta integralmente com aquele que os mais velhos aprenderam a amar, lá antes da virada do século 21. Dispostas sequencialmente, as novas canções em nada deixam a dever aos clássicos mais antigos. Pelo contrário: mostram uma evolução, sobretudo com o peso impresso por baixo e  bateria (apostando mais no beat tribal dos tontons) em combinação às guitarras pesadas e letras elaboradíssimas (e aquela verborragia lírica invejável) escritas por Sullivan.

No meio delas apenas uma presença do velho New Model Army. Aliás, logo como a segunda canção do set list, estrategicamente disposta para incendiar a plateia: a recriação de “51st State”, que, embalada pelo acento folk do violão de Justin, ganhou outra identidade e se transformou em hit no Brasil. Gravada em 1986 no álbum The Ghost Of Cain (mas originalmente lançada no começo da década por uma banda punk britânica chamada Shakes), a canção brada com sarcasmo e ironia o fato da eterna postura de subserviência sociopolítica do Reino Unido frente ao imperialismo de sua ex-colônia Estados Unidos. Não à toa, nós, sulamericanos “colonizados” até hoje, identificamo-nos demais, desde sempre, com estes versos.

Como transição do repertório da noite, a oitava e a nona canção vieram de The Love Of Hopeless Causes (1993), primeiro disco feito depois da saída da EMI (considerada a fase áurea da banda) e o último concebido sob contrato com a estrutura de um grande selo (Epic, subsidiado pela Sony e que já tinha lançado em seu elenco gigantes de vendas como Michael Jackson, Cyndi Lauper, George Michael e Pearl Jam). O hino “Here Comes The War” e o electric folk “Fate” fizeram o intermezzo para a etapa de puro deleite dos fãs de primeira hora: uma trinca dedicada aos clássicos dos álbuns iniciais da carreira. Então chegou uma versão mais sombria (no início) e acelerada (quando entra a batida marcial) de “225”. “And though this is all done for our own benefit/ I swear we never asked for any of this”, berrou Justin a plenos pulmões ao microfone, durante mais uma de suas letras bastante críticas a respeito da eterna manutenção do status quo da sociedade britânica (e não só ela, aliás). Outra de Thunder and Consolation (1989), “Green and Grey” promoveu o cruzamento entre o gótico e o folk em mais um refrão feito especialmente para cantar junto todo mundo, fosse o vocalista, os outros músicos da banda e todos aqueles fãs que sabiam as letras de cabo a rabo. Já “The Hunt” retrocedeu mais três anos, em The Ghost Of Cain, e vai até a pura raiz da sonoridade pós-punk do New Model Army.

“Angry Planet” (do EP Between Wine and Blood, de 2014) interrompeu a sequência do NMA de primeira instância com uma sonoridade mais heavy, sobretudo na intensidade e rapidez das palhetadas que compõem o riff da guitarra, acrescida à urgente bateria punk rock e as intervenções noisy do sintetizador (sim, havia um quinto elemento meio escondido atrás da cortina vermelha comandando um teclado!). “Purity” prosseguiu o vai-vem final na discografia. A faixa de 1990, do quinto álbum Impurity, era mais uma pedrada da veia politizada de Sullivan transformada em canção naquela noite. “Esta é a letra mais amarga que a banda já fez”, reconheceu o autor, antes de cantá-la. A letra é um grande tapa na cara dos falsos messias infiltrados na política que, na busca por eleição, prometem mundos e fundos para um povo incauto e desavisado. Por sinal, elementos ambos que Reino Unido e Brasil têm muito em comum. “Wonderful Way To Go”, anabolizado e épico boogie-glam-punk de 1998 (a faixa é de Strange Brotherhood, álbum que marcou a estreia do selo próprio da banda, o independente Attack Attack) encerrou o set original antes daquela ja conhecida parada estratégica para o retorno do bis.

“Porra, cadê os hits de Vengeance?”, bradava um fã mais hardcore do New Model Army. Então os músicos britânicos retornaram ao palco do Jokers para dar aos fãs fieis mais daquilo que esperavam: outra trinca de canções clássicas da banda. Para a decepção do adorador, nada, porém, da estreia fonográfica de Justin Sullivan. A escolha recaiu sobre a única da noite de No Rest For The Wicked (o segundo trabalho, de 1985), mais uma de The Ghost Of Cain e, por fim, também a terceira de Thunder and Consolation. Respectivamente, “No Rest”, “Poison Street, “I Love The World”. Três canções para engrossar o caldo do coro em uníssono dos velhos e ávidos fãs, chamados de Família e para quem o frontman carinhosamentededicou a última do set. Depois disso, ninguém mais foi embora logo depois sentindo falta de algo do primeiro álbum.

Com 44 anos de estrada e sendo quase um septuagenário com físico e gogó muito bem conservados, Justin Sullivan mostrou que o New Model Army encheu os olhos de todos os presentes por mostrar que está como um bom vinho: quanto mais velho, melhor. Em um show que acertou em cheio no career-spanning deste longo período (deixando de lado os álbuns do miolo da carreira, quando a banda ainda tentava reconstruir os passos do que havia sido durante os anos 1980 e 1990), nada melhor que o tempo para também retificar uma falha perdida lá em algum lugar deste passado. Pelo menos no que se referia a Curitiba. Aquela dívida, que não fora contraída pela banda, acabou de ser paga agora com poder e gratidão pela mesma.

Set list: “Coming Or Going”, “51st State”, “First Summer After”, “Language”,  “Winter”, “Do You Really Want To Go There?”, “Never Arriving”, “Here Comes The War”, “Fate”, “225”, “Green and Grey”, “The Hunt”, “Angry Planet”, “Purity” e “Wonderful Way To Go”. Bis: “No Rest”, “Poison Street” e “I Love The World”.

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