Music, Theatre

O Fantasma de Friedrich – Uma Pop Ópera Punk

Indo de Sex Pistols a Billie Eilish, musical revive Nietzsche para falar sobre saúde mental, perdas, amadurecimento e a beleza da vida

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Gutyerrez Erdmann/Divulgação

Quando as cortinas do Guairinha se fecharam após o musical O Fantasma de Friedrich – Uma Pop Ópera Punk, a comoção tomou conta da plateia. Era a segunda noite de espetáculo (apresentado durante quatro dias seguidos no mês de maio) e, em meio aos aplausos e gritos de “Bravo!”, o diretor e dramaturgo Dimis, da produtora curitibana Bife Seco, subiu ao palco para agradecer o carinho do público. Afinal, mais uma vez a casa estava cheia (a capacidade do Guairinha é para 500 pessoas). “Pra quem dizia que não iríamos ter público, aqui está a resposta”, foi mais ou menos essa frase que Dimis disse.

Bem, a cidade sempre teve a fama de ser um local para “teste” para muitas companhias de teatro, que fazem questão (ou faziam antes da pandemia) de estrear suas montagens por aqui. Por isso, não é a toa que a capital paranaense sedia até hoje o maior evento de artes cênicas da América Latina, o Festival de Curitiba, antes conhecido como Festival de Teatro de Curitiba.

Mas será que essa aposta pessisimista teria surgido por se tratar de um espetáculo musical? Será, ainda, que essas opiniões se referiam à extensa duração da peça ao estilo Broadway (duas horas e meia, com direito a um intervalo)? Seria “loucura”, então, sair de casa para assistir a um espetáculo que trata justamente da saúde mental, perdas, amadurecimento e beleza da vida, com a ilustre “presença” fantasmagórica do filósofo alemão-bigodudo Friedrich Nietzsche? Ou seria “insanidade” ir ao teatro para escutar vozes afinadíssimas que intepretam 18  composições originais? 

Nein! Nein! Nein! Nein!

De jeito nenhum! 

Mesmo porque os musicais estão conquistando o Brasil. Assim, O Fantasma de Friedrich vem se juntar a essa tendência que traz uma estética jovem e arrojada para os palcos, com números musicais que encantam o público da nova geração ao adicionar aura lúdica e fabulosa para abordar um tema sério.

A obra, escrita e dirigida por Dimis, foi criada em parceria com o maestro e compositor Enzo Veiga, mestre em teatro musical pela New York University que fez carreira nos palcos americanos. Agora, além de O Fantasma de Friedrich, Enzo também assina a trilha do musical Sparks, no segmento Off-Broadway, em Nova York. E para compor o elenco de 14 artistas, novos talentos da geração Z foram escolhidos durante um processo de audição que contou com mais de 300 candidatos do Paraná, São Paulo e Santa Catarina.

Depois de seis anos de produção e ensaios, o musical teve estreia nacional em 18 de maio, trazendo a história de Alana (Laura Binder), uma jovem melancólica (mezzo Dorothy, mezzo Alice) que vive atormentada pelo desaparecimento de sua irmã Lana. Ao descobrir que ela havia sido levada ao Hospital das Graças, Alana força a própria internação. Sempre acompanhada do seu urso de pelúcia, Adolfo, Alana começa a buscar pistas que levem ao paradeiro de Lana e, para isso, conta com a ajuda de grupo de adolescentes insurgentes, que desafiam a intimidadora equipe de enfermagem (claramente inspirada em O Estranho no Ninho). Durante a investigação, a jovem acaba se deparando com um livro sobre Nietzsche e libera o fantasma rabugento e existencialista, que fora vítima de sua própria mente e morrera em um hospital psiquiátrico. 

Quem dá vida ao fantasma é Ranieri Gonzalez, o Van Gogh de Vermelho Sangue Amarelo Surdo, peça de Edson Bueno que fez enorme sucesso no Festival de Teatro em 2003, há exatas duas decadas. Hoje, aos 36 anos de carreira, Ranieri e seu bigodão nietzschiano mostra, mais uma vez, porque é um dos grandes nomes do teatro paranaense.

O primeiro ato impressiona e traz um texto inteligente, interpretações sedutoramente cômicas e a potência das vozes do elenco, que se mostra muito bem entrosado. Mas, ao contrário de muitos musicais por aí, cujas canções podem se soar maçantes, boa parte do repertório traz composições vigorosas, com referências que vão de Sex Pistols a Billie Eilish e conduzidas por uma banda ao vivo, o que faz toda a diferença. 

As canções dão sustância ao espetáculo e são inseridas de forma coesa no contexto, já que não se tratam de meros textos musicados. Algumas, eu diria, têm grande potencial para tocar na sua playlist. Tanto é que o elenco se reuniu num evento paralelo no Café do Teatro (próximo ao Guairinha) para interpretar parte do set list

Depois do intervalo, foi possível escutar na plateia frases impacientes (tipo “quanto falta pra terminar?”), mas todos continuaram lá para conferir o desfecho que, digamos, é um tanto previsível e apressado. As enfermeiras, que antes intimidavam os jovens pacientes, transformam-se em quase BFF. 

Quando o fantasma de Nietzsche ressurge, entre uma fala e outra, aparecem no roteiro aforismos e pinceladas de conceitos como niilismo e eterno retorno, que se adaptam à contemporaneidade dos memes. E, no gran finale, a célebre frase do alemão, de Assim Falou Zaratustra, é dita: “é preciso ter o caos dentro de si para dar a luz a uma estrela dançante.”

Sim, o musical é um grito de socorro – sobretudo após o susto proporcionado pela pandemia – contra os efeitos nocivos dos meios digitais e as doenças mentais que afligem jovens e cada vez mais jovens: depressão, ansiedade, hiperatividade, déficit de atenção (e que daria uma bela música dos Titãs!). Além disso, funciona como uma pílula de esperança, de resistência contra esse cenário desumano, demasiado desumano. Assim, depois da curta temporada de estreia em terras curitibanas, O Fantasma de Friedrich está prontíssimo para assombrar outras plateias Brasil afora.