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Assassino Por Acaso

Richard Linklater volta aos cinemas com a história do pacato professor universitário que se vê na necessidade de fingir ser um matador aluguel

Texto por Abonico Smith

Foto: Diamond Films/Divulgação

Id, ego e superego são as três camadas formadoras da psiquê humana segundo a Teoria da Personalidade formulada por Sigmund Freud. A primeira nasce com o indivíduo. É composto por vontades e pulsões primitivas, os instintos e desejos orgânicos pelo prazer. Em suma, é aquilo o que nós somos de fato. A partir do primeiro elemento desenvolvem-se os outros dois. A última é a representação de valores e ideais morais e culturais de cada um. Ou melhor, é tudo aquilo que a gente gostaria de ser, tendo ou não capacidade para tal. Já a segunda se firma como o caminho do meio entre as outras duas partes distintas, surgindo a partir da interação do ser com o seu ambiente. Esse mecanismo regula o equilíbrio psíquico e mantem a sanidade da personalidade.

São coisas como todo o primeiro parágrafo que Gary Johnson ensina na universidade para seus alunos de Psicologia e Filosofia. Seu dia a dia é de uma índole pacata que só. Vive sozinho com dois gatos (batizados não por acaso Id e Ego) em um pequeno apartamento de um conjunto habitacional. Vai e volta para a sala de aula dirigindo um carro de uma marca conhecida por ser algo extremamente comum e banal. Por ter desde cedo aprendido a mexer com componentes de eletrônica, faz um bico curioso para aumentar o salário: trabalha para a polícia da cidade onde mora como técnico da equipe que realiza escutas e gravações para conseguir provas que possam virar prisões de possíveis mandantes de assassinatos. Estes clientes quase sempre são pegos depois de pagarem, parcial ou integralmente uma determinada quantia em dinheiro para um policial que se faz passar por um matador de aluguel interessado em realizar o trabalho para o qual é sigilosamente convocado. Só que um dia, como solução de última hora para a ausência do colega “fake”, Johnson acaba assumindo a função. A improvisação não só dá certo como acaba sendo mantida, resultando em muitos resultados positivos subsequentes para o lado dos tiras.

Gary Johnson, entretanto, não é um personagem fictício inventado para o cinema. Ele de fato existiu. Faleceu recentemente, em 2022, já septuagenário. Um artigo sobre ele publicado em uma revista estadunidense acabou chamando a atenção para sua insólita história de vida. Aí sim Gary (ou Ron, um alterego perigoso e violento, com direito a múltiplas identidades visuais) ganhou Hollywood. O resultado pode ser agora visto nos cinemas brasileiros com a estreia de Assassino Por Acaso (Hit Man, EUA, 2023 – Diamond Films). Os nomes-chave por trás desta adaptação são Richard Linklater (diretor, produtor, roteirista) e Glen Powell (protagonista, produtor, roteirista), que formam uma dupla dinâmica que dá as doses necessárias de humor, emoção e até mesmo romance ao filme.

Ao contrário do que o título escolhido para o Brasil possa indicar, o longa-metragem passa longe da trinca tiro, porrada e bomba que são indispensáveis para as tramas de ação que a Globo costuma exibir todo domingo no Domingo Maior, logo depois do Fantástico. A cinebiografia de Johnson (que, na verdade, era de Houston, no Texas, mas nas telas acaba transposto para Nova Orleans, na Louisiana por questões de incentivos financeiros à produção) a todo instante costuma justamente brincar entre as duas facetas do professor e os temas que circundam suas aulas. O que, claro, aproxima mais o espectador do costumeiro cinema autoral de Linklater, centrado em personagens curiosos e fortes (Escola do Rock, Boyhood: Da Infância Para a Juventude, Cade Você Bernadette?), histórias sobre relações cotidianas (a trilogia Antes do Amanhecer, Antes do Pôr do Sol e Antes da Meia-Noite) e um certo frescor da juventude de cada geração (Jovens, Loucos e Rebeldes, Subburbia, Jovens, Loucos e Mais Rebeldes).

O que permite a Richard e seu fiel escudeiro Glen a liberdade para alterar certas nuances da história real e torná-la uma obra divertida ficcional, incorporando elementos de um suspense noir e brincando com o limite da imaginação do espectador, que fica se balançando sem parar ao tentar supor o que os personagens principais são ou não e podem ou não podem fazer nas cenas seguintes. Não à toa sonoras gargalhadas podem ser ouvidas disparadas das poltronas em cenas bem tensas, sobretudo quando se quebram protocolos daquilo que teoricamente Gary/Ron deveria cumprir em missão. Não “por acaso” também o filme caiu no gosto da crítica, recebendo uma das mais altas porcentagens de resenhas positivas coletadas pelo famoso site dedicado a isso, o Rotten Tomatoes.

Talvez até passe meio batido pelas bilheterias nacionais, diante de outras opções tão mais mainstream e blockbuster que esta obra. Só que vai ser um daqueles que, mesmo um tanto quanto despretensioso, vai acabar ficando sendo lembrado lá no futuro por quem se arriscou a vê-lo.

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