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Clube Zero

Como um falso guru pode se esconder na pele de uma angelical e atenciosa professora de reeducação alimentar em um colégio para a elite

Texto por Abonico Smith

Foto: Pandora Filmes/Divulgação

Suspense dramático, comédia de desconforto, chame do que você quiser. Não importa a denominação: o negócio da cineasta austríaca Jessica Hausner é segurar você na ponta da poltrona e te desconcertar ao extremo. A cada cinco anos, em média, ela faz isso com um novo lançamento. Desta vez, com Clube Zero (Club Zero, 2023,  Áustria/Reino Unido/Alemanha/França/Dinamarca/Turquia/EUA/Catar/Bósnia e Herzegovina – Pandora Filmes), não é diferente.

 O filme gira em torno da chegada de uma nova professora a um colégio para adolescentes da elite. Ms Novak (Mia Wasikowska) faz sucesso pela internet vendendo chás que promovem uma nutrição mais saudável. Indicada pelo pai de uma aluna à direção, ela passa a ministrar uma disciplina volta a um pequeno grupo inicial de alunos adeptos que leva o nome de seu projeto, Comer Consciente, com o objetido de reeducação alimentar. Com as primeiras aulas, ela tenta fazer com que determinadas práticas e costumes de alimentação sejam adotados ou descartados, para que, inclusive, isso possa vir a trazer benefícios no rendimentos das notas escolares e no desempenho de atividades extras físicas, que vão do balé à ginástica. Respiração, controle da mente, quantidade e qualidade, tudo pode e deve influir para uma maior sensação de bem estar diário.

Com sua voz suave e angelical, a sempre atenciosa Ms Novak faz questão de acompanhar de perto os alunos com quem trabalha em reuniões periódicas no colégio. Sua vida particular, aliás, é um mistério. Ninguém sabe absolutamente nada sobre ela: relacionamentos, vida social, família, atitudes fora do âmbito profissional. Mesmo assim, ela passa a ganhar cada vez a confiança de um grupinho de estudantes, que, por sua vez, passam a seguir à risca suas propostas alimentares, mais radicais até mesmo do que o próprio veganismo. Inclusive em suas casas, para surpresa e contrariedade dos pais.

Aos poucos, entretanto, Hausner vai desenvolvendo uma ambientação que passa da harmonia para o caos. A professorinha querida de alguns alunos começa a despertar desconfiança nos pais, mas a diretora não dá ouvidos e deposita tod aa confiança na recém-contratada até que a pressão aumenta, aumenta… e tudo acaba estourando após um acontecimento extracurricular.

A questão sobre o comportamento alimentar e transtornos que podem vir a decorrer disso é só um mote para Hausner discutir uma questão bem mais profunda do que aquela que vem da superfície dos pratos. Com a figura central da professora esquisita que chega para abalar algo que, de uma certa forma, já está sólido e seguro esbarra com um problema que sempre existiu na humanidade mas parece ter se intensificado mundialmente após a internet 2.0 e suas redes sociais e plataformas de áudio e vídeo: os falsos profetas. A condição de tratamento de guru dada à professora pelos seus alunos queridos – que passam a segui-la incondicionalmente, não dando ouvidos a nada nem ninguém mais. Os jovens garotos e garotas passam a descartar tudo aquilo que faziam e conhecem, ignoram apelos familiares e se envolvem na crença sempre maior em algo que passaram a conhecer dias atrás, sem muita base teórica ou científica, só porque isso lhes fora apresentado por alguém que transmite sabedoria, confiança e credibilidade, sem a possibilidade de qualquer questionamento.

É nisso que a diretora e roteirista se escora para desestabilizar a audiência. Enquanto você começa a traçar paralelos mentais com pessoas, casos e referências que conhece (sobretudo aqui no Brasil; impossível não conhecer um famoso caso que nos últimos dez anos abalou de modo profundo e irreversível a vida de todo o país), Hausner promove artimanhas visuais para tornar seu filme ainda mais provocador – como o momento em que uma das meninas adeptas das pregações de Ms Novak come o vômito que acabou de provocar intencionalmente no próprio prato, cena que chegou a provocar risos (talvez de nervosismo) em cinemas da Europa. Mia Wasikowska continua escolhendo bem papeis que mostrem personagens bizarras, atípicas, fora dos padrões e, neste caso especialmente, bem amorais. Em Clube Zero é dá o tom necessário a uma protagonista que rouba a cena, tanto em relação aos espectadores como com quem se relaciona na trama. Revela-se o nome ideal para uma bela parceria com Jessica Hausner nos quesitos provocação, incômodo e desconforto. O que torna Clube Zero um filmaço. Para quem tem estômago” para aguentar, claro!

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