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Jô Soares

Oito motivos para lembrar sempre o ator, diretor, humorista, apresentador e escritor, que marcou a história da TV brasileira e morreu hoje aos 84 anos

Textos por Abonico Smith e Fábio Soares

Foto: Zé Paulo Cardeal/TV Globo

O país amanheceu muito mais triste nesta sexta-feira, 5 de agosto. Morreu por volta das duas horas da madrugada o ator, diretor, humorista, apresentador e escritor Jô Soares, aos 84 anos de idade. A causa ainda não informada, mas sabe-se que ele estava internado no hospital Sírio Libanês, em São Paulo, desde o fim de julho, para o tratamento de uma pneumonia. Uma fonte próxima ao artista, entretanto, revelou que ele andava enfrentando problemas urinários.

O nome de Jô Soares está intimamente ligado à história da TV brasileira, onde se popularizou primeiro como ator e escritor de programas de humor e depois como apresentador de talk show. Seu programa diário, sempre exibido tarde da noite, ficou no ar por 28 anos, sendo inicialmente no SBT (1988-1999) e depois na Globo (2000-2016). Também rodou muito o país como ator de espetáculos de stand up comedy e diretor teatral, além de ter publicado sete livros. O mais famoso deles, O Xangô de Baker Street, no qual trazia o detetive britânico Sherlock Holmes para o Brasil, ganhou adaptação para o cinema em 2001. Por um tempo ainda escreveu crônicas para o jornal Folha de S. Paulo, apresentou um quadro no Jornal da Globo e produziu uma página de humor na revista semanal Veja.

O Mondo Bacana embarca na multiplicidade e versatilidade de Jô Soares e cita oito motivos para ele ser sempre lembrado pelo povo brasileiro.

Humor afiado

Saber fazer humor precisa ter inteligência, raciocínio rápido e o máximo de cultura possível para fazer todas as sinapses do mundo. Jô Soares tinha isso e fazia qualquer pessoa rir em sua frente de maneira fácil, fácil. Fosse em textos previamente preparados e atuando como ator na televisão ou no teatro, fosse em improvisos necessários para se manter a qualidade da conversa e ainda o foco do espectador em suas entrevistas. Aliás, segundo suas contas, superou a marca de 14 mil entrevistas ao longo de quase três décadas recebendo gente nos estúdios do SBT e da Globo.

Gosto pela política

Elemento presente em absolutamente tudo que ele fazia, fosse em uma simples piada (contada, escrita, interpretada), fosse em suas escolhas de entrevistados, fosse no seu dia a dia, acompanhando os rumos da nação por décadas por meio de telejornais e contatos diretos com jornalistas. Quando ganhou seu programa solo de humor na Globo, a política estava sempre ali. Ele satirizava governantes por meio de personagens bem construídos e que driblavam a censura através de códigos que o telespectador entendia perfeitamente. Também durante a fase entrevistador recebia políticos de toda e qualquer orientação partidária.

Contra a ditadura

Jô não chegou a ser um artista perseguido diretamente durante os anos de chumbo do regime militar. Entretanto, além de driblar com inteligência a censura em seus textos, escondeu amigos dos milicos em sua própria casa e chegou a avisar Gil e Caetano de que eles estavam correndo risco iminente (o que de fato aconteceu logo após a assinatura do AI-5). Por isso, Jô sempre se declarou um ferrenho defensor da liberdade de opinião em qualquer situação e combateu como pode a ditadura nos palcos, telinhas e textos escritos para jornais e revistas. Mais recentemente não se furtava a dar pau seguidamente no presidente que louva torturadores e ameaça sempre voltar ao estabelecimento das trevas em verde e amarelo.

Bordões clássicos

Quem viveu os anos 1980 no Brasil se lembra com muito carinho de muitos personagens criados para os programas Viva o Gordo e veja o Gordo, mais alguns outros que incorporava no palco, sobretudo durante o espetáculo de sucesso de stand up Viva o Gordo, Abaixo o Regime! Só para citar alguns das falas eternas ditas por ele em alguns de seus mais de 300 personagens: “Você não quer que eu volte!”, “Amansebou-se” e “Je vive de béq” (o último exilado ainda em Paris depois da anistia), “Me tira o tubo!”(o general da ditadura que volta do coma), “Tem Pai que é Cego!” (o pai conservador que insiste em não perceber a orientação sexual do casal de filhos), “Vamos malhar?” (a professora de ginástica de roupas megacoloridas), É o meu jeitinho!” (o tímido Rochinha que está sempre acompanhado por seu mulherão), “Não quero meu nome em bocas de Matildes” (a sogra na banheira conversando com a filha ao telefone), “Cala a boca, Batista!”, “Casa, descasa, casa, descasa… e eu não caso!” (Irmão Carmelo), “E pensar que saí dela!” (a atriz pornô Bô Francineide, para sua mãe idosa), “Bocão!” (dentista tarado para suas pacientes modelos), “Bota ponta, Telê!” (Zé da Galera ao orelhão falando com o técnico da seleçãoo brasileira no ano da Copa de 1982), “Queco Sou?” e ”Sois Rei, Sois Rei, Sois Rei!” (Reizinho), “Só porque eu sou pequenininho” (o anão Atlas depois de sofrer bullying), “Não se deprecie, mulher!” (o conquistador Décio correndo atrás de uma linda mulher), “Beijo do Gordo! (como Jô Soares ao se despedir do telespectador Zezinho), “Muy amigo…”(Gardelón, o argentino que topava qualquer proposta ilícita para ganhar dinheiro) e “Rádio Cruzeiro, aquela que revela para onde está indo seu dinheiro!” (apresentador da Rádio Cruzeiro).

Mulheres no jornalismo político

Foi em 2005 que Jô teve a ideia de reunir semanalmente um time de mulheres atuantes no jornalismo político em seu programa na Globo. O quarteto inicial, programado para as quartas-feiras de noite pós-futebol, foi formado por Lilian Witte Fibe, Lucia Hippolito, Ana Maria Tahan e Cristiana Lobo. A ideia era a construção de três blocos sobre assuntos diversos, mas com foco principal na economia e na política brasileira. Tudo meio que no improviso, sem segurar risos e gargalhadas – afinal, para o apresentador, o papo corre bem solto quando as pessoas são do gênero feminino. Com o tempo, novas integrantes foram sendo adicionadas, promovendo um bom revezamento. Passaram também pela bancada Cristina Serra, Natuza Nery, Mara Luquet, Zileide Silva, Flavia Oliveira, Mariliz Pereira Jorge, Andreia Sadi, Vera Magalhães, Sonia Racy e Tereza Cruvinel. Batizado pelo jornalista Zuenir Ventura como “As Meninas do Jô”, o quadro se estendeu continuamente por onze anos, terminando somente com o encerramento em definitivo do Programa do Jô.

Louco por jazz

Pouca gente sabe mas Jô era um grande amante de jazz. Tinha uma boa coleçãoo de discos do gênero e chegou a comandar entre o fim dos anos 1980 e meados dos 1990 um programa na rádio Eldorado FM. Ele também tocava bongô e trompete. A percussão entrou na sua vida ainda na adolescência, quando estudava na Suíça e chegou até a acompanhar por um dia o renomado pianista Oscar Peterson. Já o instrumento de sopro foi escolhido depois que reparou que não levava muito jeito para o saxofone. Depois, como apresentador, montou um grupo de jazz – cuja formação variou de quarteto a sexteto – para ilustrar abertura, encerramento, entradas e saídas de bloco. Por vezes, arriscava-se nos instrumentos em frente à plateia.

Homem das letras

Outra das grandes paixões de Jô Soares eram os livros. Tanto que ele não se furtava a abrir muito espaço semanalmente em seu programa de entrevistas para falar com escritores e abordar lançamentos literários. Por não ser tão grande assim em se tratando de primeiras tiragens, o mercado das editoras sempre festejava quando emplacava um autor, uma pauta. Afinal, a pessoa aparecia no Jô e logo os exemplares iniciais voavam das prateleiras das livrarias. Ele próprio não se furtou a se aventurar no mundo das letras. Nos anos 1990 e 2000 publicou uma trilogia de romances que misturavam suspense e um tanto de nonsense. Muito antes da onda de misturar zumbis em títulos clássico da literatura e da História mundial, Jô teve a sacada genial de reviver o detetive britânico Sherlock Holmes e trazê-lo para o Brasil para misturá-lo com personagens histórias da cultura nacional como Chiquinha Gonzaga, Olavo Bilac e Dom Pedro II. O Xangô de Baker Street (1995), que gira em torno do desaparecimento de um violino Stradivarius no fim do século 19, resgata o fim da monarquia no país e a boemia carioca daquela época, tornou-se sucesso instantâneo de vendas, foi editado em outras línguas e ganhou, seis anos depois, versão para o cinema. A segunda obra não tardou a vir. Em O Homem Que Matou Getúlio Vargas (1998) Jô volta a misturar doses de ficção em fatos históricos e um tanto de História em uma narrativa ficcional, sempre com muito humor. A trama desta vez gira em torno de um anarquista sérvio fictício que por quatro décadas (1914-1954) viaja o mundo todo tentando matar governantes. No Brasil, como o título já diz, ele se depara com o presidente que, segundo nossos livros escolares deu um tiro na própria cabeça. A trinca se fechou com Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (2005), que destrincha uma série de mortes misteriosas de “imortais” no Rio de Janeiro dos anos 1920. Os três livros são indicados para gente de todas idades que goste de boas histórias, informações sobre o passado do nosso país e uma boa dose de humor.

Planeta Doce

Quem acompanhava regularmente o programa de entrevistas sabia que de vez em quando Jô se arriscava a cantar algo de improviso na entrada de um bloco. A base instrumental era quase sempre de blues, com um pouquinho de pegada de rock. E foi justamente caindo pro lado do rock que Jô gravou e lançou nas lojas de discos dois compactos. O primeiro, já longínquo ano de 1963, trazia no lado A rock’n’roll básico chamado “Vampiro”, composto pelo próprio Jô. Em 1982, um novo compacto de Jô chegava às lojas, agora respaldado pelo enorme sucesso do quadro do personagem Capitão Gay no programa humorístico Viva o Gordo. A música, cantada por Jô e seu “escada” Eliezer Mota (intérprete de Carlos Sueli), era o jingle que faziam os dois virarem super-heróis coloridos e cheios de purpurina que acabaram caindo no gosto da criançada e fazer o single virar um pequeno hit nas turmas de colégio. No ano seguinte, contudo, Jô voltaria a entrar em um estúdio de gravação para colocar a voz naquela que seria sua melhor música. “Planeta Doce” faz parte da coleção de dez faixas do especial infantil Plunct Plact Zuuum, exibido pela rede Globo em 1983 e que junto com outros do gênero (como A Arca de Noé, Pirlimpimpim, Casa de Brinquedos) ajudou a consolidar o nicho da música pop infantil no mercado fonográfico brasileiro de primeira metade dos anos 1980 – segmento este que viria a ser dominado logo depois por nomes como Turma do Balão Mágico, Trem da Alegria e Xuxa. Neste programa, um grupo de crianças viajava pelo espaço encontrando criaturas peculiares cantando letras que tratavam de assuntos espinhosos para a fase da entrada na adolescência, como sexualidade, matemática, conflito de interesses com os pais e alimentação desregrada. O elenco de artistas da música escolhidos para interpretar as canções reunia uma bela turma de outsiders do pop tupiniquim da época, como Raul Seixas, Gang 90 & As Absurdettes, Eduardo Dusek, Zé Rodrix… e Jô Soares! Claro que o Gordo trataria de cantar versos sobre gulodices (com direito a arranjo vocal de Leo Jaime e João Penca e Seus Miquinhos Amestrados). (AS)

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Para quem nasceu nos anos 1970, a figura de José Eugênio Soares associava-se ao humorístico Viva o Gordo, exibido nas noites de segunda (às vezes terça) pela Rede Globo entre 1981 e 1987. Já a identificação com seus personagens, surgia de forma peculiar ao telespectador. Para o trauma que minha geração sofreu com a eliminação da seleção brasileira na Copa de 1982, o personagem Zé da Galera assumia ares premonitórios. Com um palito de dente à boca e munido de um monofone ao ouvido, “telefonava” ao mandatário do escrete canarinho com a icônica frase “Bota ponta, Telê!”. Ponta a equipe tinha e dos bons! Mas nem o talento dos mísseis disparados pela perna esquerda de Éder Aleixo foram suficientes para evitar a eliminação verde-amarela antes da semifinal.

Em plena ditadura militar, Jô foi vanguardista ao abordar a homossexualidade através de seu inesquecível Capitão Gay, sempre escudado por Carlos Suely, interpretado por Eliezer Motta. Numa época em que o tema sexualidade era um tabu, sobretudo ao público infantil, a ludicidade do personagem com figurino cor-de-rosa e fala afeminada não chocava em nada. Muito pelo contrário, causava simpatia em todo mundo. Afinal, quer maior segredo de sucesso que associar temas polêmicos a super-herois? Gênio!

Em 1988 ele trocou a Rede Globo pelo SBT. Eu tinha 12 anos e foi o colorido logotipo de seu novo programa, Jô Soares Onze e Meia, que me chamou a atenção. Foi lá que vi a Legião Urbana protagonizar uma inesquecível jam session no aniversário de um ano do programa, em 1989. E teve também Tim Maia, Cazuza e Johnny Rivers. Teve Roberto Carlos, que peitou a Globo em prol de sua amizade com Jô. Teve Jorge Amado, Luis Carlos Prestes e Ziraldo. Teve até deslocamento até Moscou para uma exclusiva com o líder Mikhail Gorbachev pouco tempo após a queda da União Soviética.

Seu programa de entrevistas, incorporado pela Globo em 2000 e rebatizado Programa do Jô, teve seu epílogo em dezembro de 2016. Acabou na hora certa. Isso porque não teria mais espaço com a tal da “podosfera”, que multiplicar podcasts (muitos com produção precária e gosto duvidoso) a torto e a direito. O Jô entrevistador foi uma grife que talvez somente Marília Gabriela foi capaz de emular na televisão brasileira. Um poço de cultura e sofisticação que transitava tanto pelas altas cúpulas quanto às mais populares camadas da sociedade. O Jô era um quadro em nossas paredes, o adereço em nossas estantes, a garrafa de café em nossas cozinhas. O Jô era nossa mobília. O Jô foi nossa história por todo esse tempo.

Obrigado, querido Gordo. (FS)