Movies

Zona de Interesse

Acompanhar a vida idílica da família do oficial nazista que mora bem ao lado de Auschwitz é uma perturbação do início do fim

Texto por Janaina Monteiro

Foto: Diamond/Divulgação

Enquanto houver guerra haverá filmes sobre guerra. Desde que a academia criou a categoria de melhor filme estrangeiro no Oscar – renomeada para filme internacional em 2020 – várias produções com essa temática levaram a estatueta. Em 2016, foi o drama húngaro O filho de Saul, que conta a história de um judeu no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. Os Falsários foi o vencedor de 2008 e trazia a história da Operação Bernhard. Em 2002, Terra de Ninguém levou a estatueta ao retratar a guerra da Bósnia. Na temporada passada, o laureado foi o germânico Nada de Novo no Front.

Impossível ainda esquecer o italiano A Vida é Bela (1999), que se tornou um dos clássicos sobre o holocausto ao retratar a história de pai e filho enviados a um campo de concentração. Com a mesma essência do longa estrelado por Roberto Benigni, lembremos de Jojo Rabbit, que perdeu o prêmio principal para Parasita na cerimônia em 2020, mas levou a categoria de roteiro adaptado. E, é claro, não podemos deixar de citar nesta lista A Lista de Schindler, dirigido e produzido por Steven Spielberg e escrito por Steven Zaillian, que venceu como melhor filme em 1994. Ainda hoje lembro o desconforto que senti quando as luzes do cinema se acenderam após a sessão. 

Mas não há nada que se compare à sensação de assistir à Zona de Interesse (The Zone Of Interest, Reino Unido/EUA/Polônia, 2023 – Diamond Films), que acaba de entrar para o rol dos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial. Tanto é que foi considerado como o “melhor” filme sobre o holocausto pelo próprio Spielberg, obviamente, depois de considerar A Lista de Schindler.

A ideia de mostrar o terror da guerra por uma abordagem diferente, e, por isso, mais impactante ainda cabe ao cineasta britânico Jonathan Glazer (conhecido pelo longa Sob a Pele, com Scarlett Johansson, mais alguns videoclipes fantásticos dirigidos para canções de Radiohead, Massive Attack, Blur e Unkle). Ao adaptar o livro do recém-falecido escritor Martin Amis, Glazer explora o conceito de banalidade do mal elaborado pela filósofa e teórica judia Hannah Arendt – que, inclusive, foi presa durante a segunda guerra. 

Já na introdução, somos preparados para receber o horror diante de uma tela preta que traduz o som das atrocidades. É o preto do luto pelo mais de seis milhões de judeus covardemente executados nos campos de concentração. Entre eles, pelo menos 1,1 milhão foram exterminados em Auschwitz-Birkenau, sob o comando do oficial nazista Rudolf Höss (interpretado no filme por Christian Friedel). Enquanto a fumaça preta segue a se dissipar no céu, a família de Rudolf vive uma vida idílica no paraíso, indiferente ao inferno que acontece bem ali ao lado, a poucos metros de onde moram. 

É verão de 1943. As crianças brincam na piscina. A matriarca Hedwig Höss, (a sensacional Sandra Hüller, que também concorre ao Oscar de atriz pelo trabalho em Anatomia de uma Queda) cuida das flores do jardim, cujo perfume é incapaz de encobrir o odor dos corpos judeus carbonizados. Na mansão da vida “normal”e “paradisíaca” Glazer usa e abusa de câmaeras paradas, instaladas em pontos fixos no interior e exterior da residência. Dá para traçar um paralelo com o fascínio exercido da mesma maneira pelas lentes por trás dos espelhos do Big Brother Brasil. Vemos assim, dia após dia, anestesiados, o desenrolar, , da vida de pessoas presas em uma falsa realidade, sem muito contato com o mundo exterior, achando e determinando importância em tudo que ali fazem e dizem. Qualquer coisa que extrapole os limites daqueles muros e portões inexiste para elas.

O incômodo ao assistir Zona de Interesse se intensifica à medida que assistimos a cenas como a de Hedwig provando um casaco de pele e o batom de uma judia morta. Ou a de um prisioneiro adubando as flores com as cinzas das vítimas. Mas o ápice acontece ao redor de uma mesa, onde os oficiais e engenheiros alemães (todos personagens reais) com seus uniformes cinzas discutem o plano de logística para os fornos funcionarem.

Tudo ainda ganha mais desconforto com o trabalho produzido pele musique britanique não-binárie Mica Levi. A”quase” trilha sonora não vem por meio de música, mas sim de barulhos e sonoridades esquisitas e dissonantes aliadas ao desenho de som composto por vários tiros, choros e incontáveis gritos de dor e desespero no matadouro. Por tudo isso, Zona de Interesse é sobre a crueldade humana nua e crua. É sobre o horror da indiferença que se molda em corpos de burocratas cumpridores de ordens e cujos atos fazem com que ainda hoje respiremos a fuligem do holocausto. Perturbador do início ao fim, vem conquistando troféus importantes ao longo da temporada, a começar pelo Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes de 2023, o Bafta de melhor filme britânico e, também, como melhor filme em língua não inglesa (apesar da coprodução ser britânica, o idioma falado na obra é o  alemão). No Oscar, acumula cinco indicações: filme, filme internacional, direção, roteiro adaptado e som. É considerado o favorito para conquistar a segunda categoria.