Catarse, comoção e cima de celebração religiosa marcam o retorno de cantor e banda ao Brasil após quase três décadas
Texto por Fabio Soares
Fotos de Edi Fortini
Veja mais fotos deste show aqui
O messianismo em torno da figura de Nicholas Edward Cave não vem de hoje. Cultuado no imaginário alternativo há anos, o australiano não se apresentava no Brasil havia inexplicáveis 29 anos. Muito se especulava sobre os reais motivo pela demasiada ausência: um deles seria que, nos três anos em que morou em São Paulo (entre 1990 e 1993) não despertou o interesse de nenhuma produtora ou festival para se que ele apresentasse. Mas sejam quais forem as razões, o anúncio (em meados de fevereiro) de uma única apresentação sua no país gerou comoção nos fãs já desesperançados por uma apresentação ao vivo do monstro. Eu, incluso.
E eis que o distante 14 de outubro de 2018 finalmente chegou. Era grande o frisson em torno da presença do artista em São Paulo, sobretudo após visitas à Mercearia São Pedro (seu bar predileto em sua estadia na cidade) e à Praça da Sé. Quem não adentrou o Espaço das Américas com mais de uma hora de antecedência do início do show, enfrentou enormes filas na entrada do local. A expectativa só aumentava e não seria diferente.
Com doze minutos de atraso, a imagem de Conway Savage, seu fiel escudeiro dos primórdios dos Bad Seeds e morto há cerca de um mês) surgiu no telão, sendo efusivamente aplaudida. Nick surge ao palco amparado por um sexteto extraordinário, com destaque para seu parceiro há mais de 25 anos, Warren Ellis. O show começou com “Jesus Alone”, do álbum Skeleton Tree (2016). Com clima etéreo e letra pronunciada como um monólogo, reforça a lenda sobre o clima nos shows de Cave: algo muito próximo a uma celebração religiosa tendo em Nick, sua figura central.
Em “Higgs Boson Blues” a crônica da desesperança prosseguiu. Na plateia, olhos vidrados na figura de Cave, vestido com um terno preto e movimentando-se sem parar. Por muitas vezes, ia à plateia e segurava suas mãos como um pregador. Os presentes respondiam com devoção e a certeza de que esta poderia ser a última vez do cantor entre nós. Em “From Here To Eternity”, os contornos de catarse, ganham ares de veracidade. Cave provocava a plateia. Os Seeds, como um exército, obedeciam ao seu general de forma imediata sobre o andamento marcial que a canção sugere.
“Red Right Hand”, do álbum Let Love In, de 1994, transformou o espaço num imenso cabaré com o órgão Hammond dando as cartas. Terreno preparado para o momento dilacerante da noite: a dobradinha “The Ship Song” e “Into My Arms”. A primeira filosofa sobre a solidão e pede a companhia de uma amada imaginária. A segunda escancara o romantismo regado a religião que tanto permeiam a carreira do artista. Esta é, disparada, a melhor canção de sua autoria. Ele sabe disso e a plateia, idem. Por isso um clima episcopal tomou conta do Espaço das Américas. Poucas vezes em minha vida, me emocionei tanto quanto a execução de “Into My Arms”, anunciada por ele como “uma prece para o Brasil”. Vi gente chorando ao meu lado e à minha frente e não tiro a razão de ninguém.
A catarse prosseguiu com “Tupelo”. Imagens de um furacão atingindo o Mississipi eram projetadas no telão, ao mesmo tempo que a banda reproduzia os sons de uma tempestade. Êxtase! Hipnose geral que prosseguiu com a maravilhosa “Jubilee Street”, a melhor faixa do álbum Push The Sky Away (2013). Seu epílogo monstruoso era comparável a umtsunamicom total entrega e raiva dos músicos. Baixou em Nick Cave a entidade punk que ele tanto carregou. Destaque Ellis ao violino. A performance dos Seeds, aliás, em muito se assemelhava à banda de PJ Harvey, antiga namorada do cantor.
A partir de “The Weeping Song” a catarse (sempre ela) foi escancarada de vez. Do alto de um púlpito em meio à plateia, Cave regeu os presentes numa perfeita sintonia ídolo-público. Momento para guardar na memória quando várias pessoas entoaram “#EleNão!”, contra o candidato líder nas pesquisas para presidente. A evocação foi tanta que o cantor permitiu que uma fã repetisse a frase ao microfone, para delírio do restante, e confirmou sua posição pessoal quando alguns poucos presentes ficaram na ameaça de um grito contrário.
Aproveitando a atmosfera favorável, cerca de vinte fãs foram convocados a subirem ao palco para a execução de “Stagger Lee” e “Push The Sky Away”. Maravilhoso assistir a fãs ensandecidos pulando ao lado dos músicos. Antes da última canção, Cave ordenou para que os mesmos se sentassem no palco e, com ar professoral, assumiu de vez a figura de líder religioso com uma seita aos seus pés. Vociferou como um pastor e gesticulou como tal. Se era um final de primeira parte inesquecível para quem estava na plateia, imagine para quem teve o privilégio de estar ao lado do ídolo.
Para o bis, um quádruplo leque recheado de êxtase e tristeza pela proximidade do final da apresentação. “The Mercy Seat” e “City Of Refuge” trouxeram um ar de melancolia ao cantor. “Jack The Ripper” fez Cave lembrar de sua época de habitante da metrópole, citando que a compôs quando residia por estas bandas. Finalmente, “Rings Of Saturn”, mais uma de Skeleton Tree, fechou a apresentação com ar sublime. O cantor, visivelmente emocionado, despediu-se da plateia com um efusivo agradecimento. Ouso dizer que Cave encarou o show de São Paulo com uma expectativa especial com relação aos demais shows da turnê.
Na saída, a certeza de que um dos grandes shows da década havia passado diante de nossos olhos naquela noite de Popload Gig. Daquelas apresentações que será citada em mesas de bar por anos. Uma vontade danada de ver Nick Cave ao vivo, mais uma vez, ficará em nós por muito tempo. Até porque, Nick sempre será o nosso pastor. Com ele por perto, nada nos faltará. Absolutamente nada.
Set list: “Jesus Alone”, “Magneto”, “Higgs Bosom Blues”, “Do You Love Me?”, “From Her To Eternity”, “Loverman”, “Red Right Hand”, “The Ship Song”, “Into My Arms”, “Shoot Me Down”, “Girl In Amber”, “Tupelo”, “Jubilee Street”, “The Weeping Song”, “Stagger Lee” e “Push The Sky Away”. Bis: “City Of Refuge”, “The Mercy Seat”, “Jack The Ripper” e “Rings Of Saturn”.