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Casa Izabel

Decadente mansão colonial que dá vazão a fantasias femininas mostra que mesmo no universo LGBTQIA+ nem tudo é o que pretende ser

Texto por Abonico Smith

Foto: Olhar/Moro Filmes/Divulgação

A madrugada do dia 28 de junho de 1969 sinalizou uma mudança definitiva de costumes em um bar bastante popular do Greenwich Village, em Nova York. Policiais baixaram na área para descer o cacete em seus frequentadores. O local, Stonewall Inn, era comandado pela máfia e abrigava facetas bastante marginalizadas da comunidade gay, como transexuais, travestis, afeminados, drag queens, gigolôs e jovens expulsos de casa e em situação de rua. Embora a repressão com violência não fosse bem uma novidade para o universo LGBTQIA+, a paciência zero para a manutenção da intolerância institucional fez o caldo entornar. Diferentemente das vezes anteriores, a clientela do bar revidou à altura e, de forma inédita, foi a tropa fardada que saiu apanhando. O quebra-pau se transformou em marco zero da manifestação pública do gay pride e, desde então, o mês virou referência para eventos, comemorações e celebrações de identidades de gênero e orientações sexuais que sejam diferente do padrão heteronormativo.

A Batalha de Stonewall escancarou as portas das ruas para a cultura gay. Pouco a pouco, encaixar-se em alguma letrinha LGBTQIA+ deixou de ser algo que precisasse ser escondido da sociedade, algo que tivesse de permanecer em sigilo e dentro dos limites formados entre os próprios membros da comunidade. Como o que ocorria dentro da Casa Susanna, uma propriedade gigantesca no estado de Nova York, relativamente afastada da metrópole Manhattan, onde, durante o final de semana, mulheres trans e crossdressers dos anos 1950 e 1960 podiam se hospedar para viver em sua plenitude a sua alma feminina nem que fosse por algumas poucas horas. Pelo menos, em uma casa segura e distante de quase tudo, não poderiam ser incriminadas por supostas ofensas morais à sociedade extremamente conservadora da época. Tal localidade deu origem inclusive a em um livro fotográfico que documentava um pouco da atmosfera en femme que rolava por lá.

Inspirado exatamente por esse livro, o roteirista Luiz Bertazzo criou para o cinema uma trama com um paralelo em verde e amarelo da Casa Susanna. Tendo ao lado o diretor Gil Baroni e a distribuidora Diana Moro (trinca esta que assinara em 2020, outro filme paranaense de narrativa queer chamado Alice Junior – leia aqui a resenha publicada pelo Mondo Bacana), Bertazzo apresenta agora Casa Izabel (Brasil, 2023 – Olhar/Moro Filmes), que acaba de ser lançado em algumas capitais brasileiras aproveitando a semana em que Stonewall completou 45 anos na História.

Situada em uma região rural incrustada em algum lugar no mapa do estado do Paraná, a tal Casa Izabel é uma enorme propriedade colonial oriunda de uma elite escravocrata brasileira. Sua herdeira, uma mulher matrona e longeva exposta à cruel malevolência do decorrer do tempo. Durante o mesmo período retratado no livro Casa Susanna, sua correspondente tupiniquim bombava com uma clientela viva e pulsante. Os tempos passaram, entretanto, e mais precisamente naquele início de anos 1970 (temporalidade da história) a decadência toma conta de tudo. Dá para se contar nos dedos as meninas que continuam indo para a mansão e o glamour se desfez por completo por lá.

São os anos de chumbo da ditadura militar no Brasil e este período de trevas também se alastrou para dentro daqueles muros, portas e janelas. Afinal, o filho da gerente e única mulher cisgênero, que havia se mudado para Curitiba para fazer um curso de Humanas na UFPR, desapareceu e não manda qualquer notícia à família desde então. Só ela e seu sobrinho (criado como um segundo filho desde a morte da irmã) são as únicas habitantes da casa. Ele, também assumindo uma persona feminina constantemente, faz os serviços caseiros que tenham toda e qualquer ligação com as poucas hóspedes que ainda vão lá para dar vazão às suas fantasias femininas – sempre com o adendo de regras como a proibição de se portar armas para não haver risco à integridade física de ninguém e também de qualquer avanço no sinal vermelho fechado para o exercício da sexualidade que vá além da identidade de gênero.

Contando com um elenco pequeno (formado por um time de atores de primeira grandeza “formados” nos palcos da dramaturgia paranaense) e o luxo de não ter um nome que possa realmente ser considerado como protagonista da trama (a audiência, a cada instante, percebe a atenção mais centrada em alguém diferente), o universo da fantasia feminina tomado por homens vai se sobrepondo a texturas de suspense fornecidas por uma carga nova de informação que se adiciona à trama. Aos poucos, tudo com o que as meninas que vão lá pretensamente para serem e parecerem ser meninas menos se importam é justamente a feminilidade. Tem doses de misoginia, machismo, preconceito, vingança, tortura. E violência, claro. Não só física, mas também psicológica e verbal. Adicione a tudo isso o pensamento conservador que ia plenamente ao encontro da ideologia sociopolítica que reinava nababescamente nas endinheiradas elites do país.

Casa Izabel, então, ultrapassa toda a questão queer que parece inicialmente carregar em suas bandeiras e vai conversando com os espectadores por meio e suas entrelinhas. Não que a segunda parte anule a primeira. Pelo contrário. Torna bastante interessante o fato de abrir os olhos para uma certa contradição no discurso e revelar que dentro do próprio meio LGBTQIA+ nem sempre as coisas são realmente aquilo que pretendem ser. Para o mal, infelizmente.

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