Music

Madonna – ao vivo

O lado A e o lado B de quem assistiu à espetacular derradeira apresentação de A Celebration Tour na praia de Copacabana

Madonna durante a canção “Like a Prayer”

Textos por Abonico Smith e Rodrigo Browne

Fotos: Reprodução

Transgressão é a melhor única palavra que pode definir os 40 anos de carreira fonográfica de Madonna. Tanto no sentido de ir além quanto no de descumprir determinadas ordens (veladas ou não) do estabilishment. A última noite de 4 de maio, quando a cantora encerrou a turnê A Celebration em uma megaestrutura montada nas areias de Copacabana, no Rio de Janeiro, foi um belo exemplo deste espírito sempre ousado e desafiador da artista.

Tentar não cair no mais do mesmo ao escrever qualquer texto crítico sobre a cantora é uma obrigação. Portanto, não espere aqui meras repetições sobre os simbolismos que lhe caíram neste longevo período de tempo. Muito já se ponderou sobre o empoderamento feminino, as bandeiras da diversidade sexual, a solidez artística que perpassa o terreno musical e se estende para demais expressões artísticas e a penca de hits planetários empilhados disco após disco de 1983 para cá. Não será desta vez, portanto, que isso se dará por aqui.

A artista transgressora, que vai além (e bem além aliás!), ficou estampada no formato da apresentação. Não foi bem um show, muito menos um concerto. Foi um musical. Pop, para as massas, mas um musical no strictu sensu de uma encenação teatral recheada por canções. Falou-se demais, depois da noite de sábado, na transfusão da Broadway para Copacabana, já que, em sete atos, Madonna contou a história de Madonna. Ela passou por canções de várias fases, muitas delas interpretadas parcialmente ou aparecendo discretamente como vinhetas e inserção incidental em remixes introdutórios dos atos ou arranjos de outras canções (se hoje nem os  jovens consumidores de plataformas de streaming nem as emissoras de rádio no tradicional dial têm paciência para esperar uma faixa chegar ao seu final de fato, porquê a popstar não poderia fazer o mesmo ao vivo agora?). Reviveu looks, cabelos e figurinos desde aquela aprendiz de dançarina e cantora nada famosa que chegou em Nova York cheia de sonho, ambição e um punhado de dólares no bolso. Rebateu de forma jocosa as críticas ácidas que recebia durante os anos iniciais da carreira reproduzindo as mesmas nos telões com se fosse uma reportagem-videoclipe. No palco, muitos bailarinos, a protagonista sendo encenada por ela própria e por simulacros do passado que contracenavam com a Madonna de hoje. E nada de músicos. Zero banda. Tudo bastante ensaiado, para que as várias câmeras captassem absolutamente tudo. Para a transmissão comercial da TV, para a transmissão artística dos telões.

Madonna e Pabllo Vittar durante a canção “Music”

Aliás, os maldosos comentários sobre fazer playback ao vivo que volta e meia assombravam a carreira dela nem foram tão massivos desta vez. Não houve necessidade. A base pré-gravada foi muito, muito desmitificada e pouco importou se até a voz dela é pré-gravada em boa parte das músicas (afinal, tente você dançar e se movimentar sem parar por quase duas horas pelo palco com elevações e passarelas e não entoar qualquer frase melódica sem ofegar). Com a potência do som e a megaestrutura montada na praia, as batidas dançantes eletrônicas vieram carregadas de peso impressionante, capaz de incendiar a multidão de quase 2 milhões de pessoas (fora 1,6 mi na areia e na calçada e na rua, havia muita gente nos apartamentos dos prédios transformados em camarotes e ainda outros tantos vendo tudo do oceano, dentro de 380 embarcações alugadas e devidamente autorizadas pela marinha para estarem ali naquele trecho marítimo).

Só que para ser autocelebrada em um musical dos 40 anos de carreira, Madonna precisava ser transgressora ali em Copacabana e quebrar regras ali em do palco também. E assim o fez. Estava no mesmo bairro e na mesma praia em que um certo fracassado ex-presidente, na manhã recente de um domingo, reuniu 30 mil apoiadores (para bom entendedor, meio público pagante reunido pelo Flamengo em dia de jogo importante no Maracanã basta!). Em um sábado à noite, a popstar juntou mais de cinquenta vezes o número de fãs. Então tinha de se esbaldar. Falou palavrões a torto e a direito (para diversão de quem assistia ao espetáculo pela Globo, a tradutora simultânea se equilibrava direto na corda bamba, inventando frases e palavras similares para não perder o sentido do que ela falava ao microfone), fez simulações sexuais quase explícitas ao lado das convidadas especiais Anitta (que participou como jurada dos desfiles e passos de dança do momento ballroom de “Vogue”) e Pabllo Vittar (que rebolou livre, leve e solta ao som de uma diferentona “Music” levada pelas percussões de crianças e adolescentes ritmistas de escolas de samba cariocas), profanou as cruzes de uma capela em “Like a Prayer”, cantou os versos dos surubões de “Erotica” e “Justify My Love”, disse estar estupefata sendo “espremida” por aquela multidão na praia e o “Jesus” que observava tudo lá de cima do morro e ainda, ousadia das ousadias, fez às câmeras o L quando estava vestida por um espartilho com as cores da bandeira brasileira. Resumindo: disparou performances perfeitas para confrontar boa parte de um público Deus-Pátria-Família-Liberdade que estava sintonizado no evento em sua própria casa (sem falar que havia conhecido político/traficante da extrema-direita em plena área vip). Prestes a completar 66 anos de idade e mesmo com uma joelheira especial para amenizar terríveis dores sentidas há anos na perna esquerda, Madonna ainda mostrou ter combustível suficiente para botar fogo no circo do conservadorismo radical que ainda quer fazer do nosso país o seu reino eterno.

Madonna e Anitta durante a canção “Vogue”

De resto, ela ainda revelou aos brasileiros o talento de seus quatro filhos adolescentes. David Banda tocou violão na versão acústica de “Express Yourself” e em “La Isla Bonita” e ainda fez as vezes do soberano púrpura Prince com um solo de guitarra. Mercy James tocou lindamente um piano de cauda na balada “Bad Girl”, canção incluída no repertório dessa turnê por insistência de seus fãs ao redor do mundo. Stella participou do corpo de baile escalado para a quase-country “Don’t Tell Me”. Sua irmã gêmea Estere encantou todo mundo interpretando a DJ e a ousada bailarina mirim com fantásticos passos de dança trazidos do underground gay nova-iorquino dos anos 1970 e 1980 em “Vogue”. Costurando os atos da narrativa do musical, a inclusão do ator Caldwell Tidicue (mais conhecido pela alcunha de Bob The Drag) também revelou-se um acerto e tanto.

Encerrada a turnê em que passou a limpo as diversas Madonnas reunidas de 1983 para cá, ela voltou para casa para descansar desta longa empreitada. Apenas Deus deve saber o que virá daqui para frente em sua trajetória artística. Entretanto, é certo que não deverão ser abandonadas a pátria planetária e multilíngue de fãs, todas as famílias que fogem do modelo bíblico de Adão e Eva e, sobretudo, aquela liberdade, pela qual sempre prezou, de ser e fazer tudo o que quiser. Afinal, bitch, she’s Madonna (AS)

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Vista aérea de Copacabana durante o espetáculo

Quatro de maio de 2024. Sábado de outono no Rio de Janeiro. Dia de celebração de quatro décadas da carreira de uma das cantoras mais icônicas do nosso tempo. Madonna escolheu a Cidade Maravilhosa para o último show da sua Celebration Tour. Tiro certo. Praias, bares, hotéis, restaurantes: tudo estava lotado. O clima não poderia ser melhor: a capital carioca adora fazer uma festa e essa foi a maior festa que Madonna poderia ter na sua vida com quase dois milhões de convidados para comemorar com ela e sua música na maior pista de dança do mundo, a praia de Copacabana, que por algumas horas virou Copamadonna.

A chegada na praia foi um espetáculo à parte. Após passar pelas barreiras policiais que revistavam todo mundo para garantir a segurança, o calçadão revelava vários universos num só. O multiverso de Madonna estabeleceu uma união cósmica com a multidão do réveillon de Copacabana presente numa enorme parada LGBTQIA+. Liberdade, amor, tolerância, respeito e alegria – tudo ao mesmo tempo em um só lugar. Ao longo da praia, a economia popular, com ambulantes de todos os tipos e todos os produtos possíveis, faturava alto com a venda de churrasquinho, bebidas, sorvetes, banquinhos para descanso e, claro, inúmeros acessórios de memorabilia do show (faixas, camisetas, copos, leques, bandeiras). Desde cedo a circulação era intensa, com uma fauna humana variada e divertida que reunia casais felizes vestidos com as cores do arco-íris, famílias com crianças nos ombros, drag queens com seus leques ritmados e vestidas de Madonna, moradores dos vários bairros da cidade e turistas de todas as partes do Brasil e do exterior. Tudo em perfeita harmonia.

Vista aérea de Copacabana durante o espetáculo

O megapalco estava na frente do hotel mais famoso do Brasil: o Copacabana Palace. A rainha do pop se apresentou olhando a praia do Leme e com a maior multidão que um artista já reuniu na orla carioca – superando o público que foi ver os Rolling Stones em 2006. As pessoas ocuparam toda a faixa de areia mais as ruas. Telões ajudavam a visão de quem não conseguiu ficar próximo do palco. O som, longe do ideal, deixou a desejar. Mas ninguém ligou para isso.

O melhor de tudo é que, no final da noite, tudo acabou bem. Para um evento desse porte, o máximo que aconteceu foram algumas ocorrências de furtos de celulares pelos pivetes de sempre que acabam roubando os inocentes (e distraídos) de sempre. Mas a sensação geral do público foi de alegria, de quem foi a um show histórico de um ícone da música mundial. Presente no momento certo e no lugar perfeito. (RB)

Set list: introdução It’s a Celebration, “Nothing Really Matters”, “Everybody”, “Into The Groove”, “Burning Up”, “Open Your Heart”, “Holiday”, interlúdio The Storm, “Live To Tell”, interlúdio The Ritual, “Like a Prayer”, interlúdio Living For Love, “Erotica”, “Justify My Love”, “Hang Up”, “Bad Girl”, interlúdio Ballroom, “Vogue”, “Human Nature”, “Crazy For You”, interlúdio The Beast Within, “Die Another Day”, “Don’t Tell Me”, “This Little Light Of Mine”, “Express Yourself”, “La Isla Bonita”, “Music”, interlúdio Madonna, “Bedtime Story”, “Ray Of Light”, “Rain”, interlúdio “Billie Jean/Like a Virgin”. Bis: “Bitch I’m Madonna”, encerramento Celebration.

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