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A Cidade das Tristezas

Longa que integra mostra dedicada a Hou Hisao-hsien no festival Olhar de Cinema retrata a dolorosa passagem de tempo de uma família taiwanesa

Texto por L. L. De Ofélia

Foto: Divulgação

Ano: 1945. Um nascimento: o filho de Lin Wen-heung (Chen Sung-young), Kang-min (“Luz”). Um aviso: o Imperador Hirohito anuncia a rendição do Japão na Segunda Guerra Mundial. Assim abre A Cidade das Tristezas (Bei Qing Cheng Shi, Taiwan, 1989). Durante as mais de duas horas e meia acompanha-se a história da família Lin com foco em seus quatro irmãos: o mais velho, Lin Wen-heung, dono do bar Little Shanghai; o terceiro, Lin Wen-liang (Jack Kao), que foi tradutor a serviço do governo de ocupação japonês e começa a se envolver em esquemas ilegais; e o mais novo Lin Wen-ching (Tony Leung), um fotógrafo e médico surdo que se comunica pela escrita. O segundo irmão é um desaparecido de guerra nas Filipinas.

O filme desenvolve-se na passagem do governo colonial japonês na ilha taiwanesa (1895-1945) até a derrota da resistência nacionalista à investida da China continental, em 1949. Os acontecimentos políticos e sociais são apreendidos direta ou indiretamente através da família Lin e o movimento que se expressa é o de uma longa e inevitável dissolução de seus laços, de sua própria existência. Independente do grau de envolvimento que cada irmão tem com a política, todos eles são afetados, muitas vezes não proporcionalmente ao seu engajamento.

Hou Hsiao-hsien, cineasta taiwanês homenageado na mostra Olhar Retrospectivo da edição 2024 do festival curitibano Olhar de Cinema, é um autor que em sua carreira de 35 anos prima pela temporalidade lenta, pelos planos longos, muito calmos. Neste longa, que faz parte de uma trilogia acerca da nação taiwanesa, a falta de explicações para as ações que se acumulam (muitas destas tomadas de forma passional) num enredo intrincado (com grandes lapsos temporais, elipses e personagens que são introduzidos apenas uma vez) são conduzidas com um tempo próprio, que permite a apreensão e reflexão sobre o que vemos.

A história venta em nossa frente. Começa imprecisa, embora marcada por um ato político, a rendição japonesa, pegamos a família “no andar” de eventos como um nascimento, a internação de um irmão, a discussão de um casal, a criação de outro, reuniões políticas. Tentamos entender o que ocorre e a gradual compreensão dos laços que unem as personagens só torna o filme mais pesado, mais triste, mais significativo em suas implicações políticas, nas contradições que cercam os planos complexos, com personagens tão díspares, mas unidas. Os momentos de beleza, de conexão, ganham em profundidade que não decai em desespero, mas na apreensão pormenorizada, estética, das relações humanas que florescem em meio à instabilidade social. A luta pela nacionalidade taiwanesa integra-se emocionalmente às paisagens humanas e naturais: muito além da mera consonância política, a poética do envolvimento, do pertencimento.

Família igual violência, mas também ternura – muitas vezes um se exprimindo no outro, a tentativa de sobrevivência em meio ao caos, ao fluxo imparável do tempo político. A dissolução de uma família que tenta se manter, sob a luz de uma lâmpada, ao redor da mesa, personagens reunidas num plano longo, estático, conversando amenidades, jogando, comendo, olhando, cercadas pela névoa, pela história que venta carregando suas flores, como no poema presente em uma cena.

A Cidade das Tristezas (filme lançado no Brasil também com o título A Cidade do Desencanto) não acaba, mas pára, some, desvanece como uma época desaguando em outra: a derrota do movimento nacionalista, que marca o fim da narrativa, é escrita dentro da imagem final do filme, que continua a roda, insistente. A obra é de 1989, a história continuou para além. A China continental perdeu seu comando irrestrito sobre a ilha em 1988. A família Lin, de certo modo, continua, imprecisa como flores ao vento.

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