Movies, TV

Bigbug

Jean-Pierre Jeunet aposta no humor de sitcom de um futuro distópico e se distancia do mundo fantástico de sua Amélie Poulain

Texto por Taís Zago

Foto: Netflix/Divulgação

Onze entre dez turistas vão a Paris procurando o mundo fantástico de Amélie Poulain. Ou pelo menos um amor francês. Todos se decepcionam. Paris é uma cidade real, grande, metropolitana e com muitas mazelas, como toda grande cidade europeia. Um dos culpados por essa idealização é o diretor e roteirista Jean-Pierre Jeunet e a sua incrível capacidade de enxergar beleza nas pequenas coisas e ao criar cenários fantásticos.

Não entre com essa expectativa para assistir a Bigbug (França, 2022 – Netflix). O filme é uma viagem completamente diferente. O ano é 2045 e, parafraseando uma das personagens, “pensaram que carros voariam no ano 2000 e erraram em 45 anos.” Nesse futuro não tão distante, temos mais um confronto homem versus máquina. Um modelo de distopia já bem gasto depois das inúmeras investidas, algumas bem sucedidas, nesse nicho. O novo filme de Jeunet mais parece um episódio de Black Mirror feito com os Jetsons e com a direção de Tim Burton em Marte Ataca!.

Bom, então seria algo horrível? Não, não é. Ainda continua sendo um filme gostoso assistir, com algumas piadas esporádicas que nos lembram de clichês do comportamento francês. Bigbug tem cenários e figurinos primorosos, até nos mínimos detalhes – o que por si só já vale as quase duas horas de duração. Mas o que temos aqui se movimenta em uma direção contrária a seguida em O Fabuloso Destino de Amélie Poulain. O humor é pastelão; os gestos, exagerados; as emoções, exacerbadas. Sem qualquer reflexão profunda e com zero melancolia.

Jeunet bolou um enredo bastante simples: Alice (Elsa Zylberstein) recebe em casa a visita de um possível pretendente, Max (Stéphane De Groodt), e de seu filho. No meio do date aparece sua filha, seu ex marido Victor (Youssef Hajdi) e a atrapalhada e bem mais nova namorada dele, Jennifer (Claire Chust). Para completar a trupe caótica, do nada aparece a curiosa vizinha Françoise (Isabelle Nanty).

É nesse momento que os robôs que servem os humanos resolvem virar a mesa e transformar seus donos em seus pets/servos. As portas se fecham e os vidros são inquebráveis. Os humanos ficam presos na casa e à mercê de um líder Yonyx, uma espécie de soldado ciborgue/replicante que aparentemente era responsável pela ordem na sociedade humana antes de se rebelar contra seus “mestres”. E agora? Como fugir? Bora lá tentar confundir os robôs! E assim vai até o final.

Bigbug é um filme pra toda a família. É daqueles que poderiam passar tranquilamente em um canal popular, sem corte algum. No meio da tarde. Isso não é necessariamente um demérito, mas produtos com esse padrão de qualidade e profundidade já inundam o mercado. As pessoas fugiram da TV aberta para as plataformas de streaming em busca de experiências novas. Entretanto, Bigbug, infelizmente, é mais do mesmo.

Movies

Embarque!

Natureza dos afetos e relações dos jovens durante a temporada do verão é o foco principal deste longa francês

Texto por Leonardo Andreiko

Foto: Belas Artes/Divulgação

Há algo de particular nas viagens de verão. O sol forte, roupas frescas, o contato com gente de todos os cantos e aquele barzinho para passar a noite. Para quem vive na fria Paris, ainda por cima, a experiência de deixar a chuva pra trás soa ainda melhor. Pelo menos é o que parece quando se assiste a Embarque! (À L’Abordage, França, 2020 – Belas Artes), novo longa-metragem de Guillaume Brac.

Nele, a viagem de verão é particularmente curta e de intuito muito bem definido: Felix (Eric Nantchouang) acabou de conhecer Alma (Asma Messaoudene) e, já apaixonado, decide surpreendê-la em sua viagem com a família para o interior francês. Ele e o melhor amigo Chérif (Salif Cissé) conseguem uma carona com Edouard (Édouard Sulpice), um filhinho da mamãe que rapidamente se incomoda com o tom jocoso dos caroneiros. 

Presos num camping devido à quebra do carro de Edouard (de sua mãe, na verdade), o grupo é forçado a estar junto. Daí surge uma qualidade peculiar do roteiro de Brac e Catherine Paillé, que remete à natureza leve e livre do veraneio que abre esse texto. Apesar da odisseia de Felix tentando conquistar uma nada interessada Alma conferir a trama ao longa, esse não é, propriamente dito, um filme de enredo. As cenas que se constroem optam deliberadamente por uma investigação muito sutil e bem-humorada sobre a natureza dos afetos – e é nos pequenos momentos em que eles se solidificam.

Somos convidados a acompanhar Chérif, deixado para escanteio pelo apaixonado Felix, em seus pequenos momentos aproximando-se de Helena (Ana Blagojevic) e Nina, sua filha bebê. Enquanto o apaixonado protagonista disputa Alma com o arrogante salva-vidas Martin (Martin Meisner), Edouard consegue conectar-se com Nicolas (Nicolas Pietri), o ansioso amigo do “vilão” do romance de Felix, e, como quem não quer nada, acaba com um dos mais significativos arcos narrativos do filme.

Essa natureza pacata sem deixar de lado a leveza e a diversão permite que as personagens respirem e interajam sob uma fotografia bastante naturalista, em que a claridade que o sol emana dificilmente deixa a tela. O que poderia conferir um visual “chapado” à obra (ou seja, sem dimensões e profundidades) é o que lhe garante a dramaticidade tão sutil.

Embarque!, que extrai seu nome de uma cena em que o trio de protagonistas, sem ter o que fazer, assiste a uma apresentação de comédia infantil no centro da cidade, convida-nos justamente a um embarque despretensioso nas relações afetivas que se formam, seja na ausência de expectativas e intencionalidades, seja no empacamento que elas são capazes de gerar. Ao fim do longa de Brac, não apenas nos intimizamos com cada uma das personagens em tela, mas estamos prontos para deixá-las ir em paz. Uma relação leve como as amizades de verão.

Music

História do Rock: T.Rex

Há meio século, Marc Bolan atiçava a libido das adolescentes britânicas com o glam rock e via seu grupo ser considerado o “sucessor” dos Beatles

Texto por Abonico Smith

Fotos: Reprodução

Sábado, 18 de março de 1972. Arena Wembley, Londres. Sessão dupla de concertos (um à tarde e outro à noite) para um total de público de 16 mil pessoas. Quase todas elas adolescentes, a maioria feminina. Da plateia vem um frenesi descontrolado, com muitos gritos histéricos e devoção extrema ao frontman da banda, um jovem de roupas supercoloridas e brilhantes, longos cabelos encaracolados e aquela androginia no visual. Muitas das garotas, inclusive, repetem o visual purpurinado espalhado pelo ídolo através de fotografias em jornais e revistas mais as costumeiras aparições em programas musicais na televisão. Marc Bolan é o novo Deus da música pop jovem e sua banda, T. Rex, coleciona, consecutivamente, desde o ano anterior, três números um e mais um número dois na parada britânica de singles. A imprensa nacional, como sempre ávida por incensar boas novidades da ilha e cunhar novos termos já arrumou uma nova expressão para suceder a beatlemania de outrora. A onda de êxtase coletivo agora chama-se T.Rextasy.

O ano de 1971 fora bastante produtivo para Bolan e seu reformulado grupo, agora na formação de quarteto e carregando um novo batismo. Apesar da ainda pouca idade, o guitarrista e vocalista não era necessariamente um novato no circuito musical londrino. Nascido em 30 de setembro de 1947, ele assinou seu primeiro contrato fonográfico aos 18 anos. Lançou dois compactos sem qualquer repercussão até juntar-se ao grupo mod John’s Children em 1967, com o qual ficou apenas quatro meses, até a sua dissolução.  Na sequência, formou um novo projeto chamado Tyrannosaurus Rex. Acompanhado apenas pelo percussionista Steve Pelegrin Took, ele tocava violão sentado no chão, andava sempre com uma capa preta tal qual um antigo mago e cantava letras formadas com temas como bruxaria e outros temas místicos. Pudera: Bolan, entrando nos seus vinte anos de idade, estava imerso até a medula na contracultura hippie que dominava as artes da então chamada Swinging London. Com um certo burburinho no circuito musical e o grande incentivo do então iniciante DJ John Peel, desde sempre ávido por descobrir e impulsionar no rádio nomes desconhecidos do underground, a dupla lançou quatro álbuns e algunssingles até 1970, quando Peregrin deixou a formação por conta de seguidos problemas de bastidores provocados pelo consumo excessivo de álcool e drogas. Paralelamente, ele chegou a lançar um livro de poesia que alcançou a marca de 40 mil exemplares vendidos, marca considerada expressiva para o gênero.

Com a saída de Peregrin, Bolan aproveitou para reformular por completo o direcionamento conceitual do projeto. Encurtou o nome para T.Rex, comprou uma guitarra Gibson Les Paul e uma outra Fender Stratocaster e comandou a eletrificação da sonoridade e a formação de um quarteto (com a entrada em definitivo de um baixista e baterista, ao lado de um novo percussionista), jogando-se, assim, ao encontro de seus sonhos de adolescência. É que ele nunca escondera seu fascínio pelos pioneiros do rock’n’roll desde a entrada na puberdade. Amava Elvis Presley Chuck Berry, Little Richard, Gene Vincent e, em especial, Eddie Cochran. Largou o colégio aos 14 anos e desde então dedilhava seu primeiro violão com esmero, perseguindo o sonho juvenil de ser tão famoso quanto eles na área musical. Como a mãe trabalhava de feirante no East End londrino, em alguns dias da semana ia junto com ela para visitar lojas de alfaiataria da região. Seu interesse, mesmo moleque, era vestir-se com ternos tão impecáveis quanto de cortes diferenciados. Um gosto relativamente esquisito e incomum para um moleque daquela idade, convenhamos.

Ao lado do produtor musical Tony Visconti (e do recém-chegado Mickey Finn, que veio para comandar um alucinado conjunto de congas, bongôs, apitos, maracas e pandeirosmais os backing vocals afinadíssimos dos músicos/comediantes Flo & Eddie, ex-integrantes dos grupos Turtles e do Mothers Of Invention de Frank Zappa, sempre presentes nas gravações de estúdio), Bolan começou a reformulação sonora ainda em 1970, com o single “Ride a White Swan”. Mesmo ainda insistindo em temáticas do paganismo comuns ao Tyrannosaurus Rex (neste letra há palavras como “druida”, “feitiços” e Beltane – nome de uma tradicional festa de regiões da Irlanda, Escócia e também Ilha de Man, geralmente celebrada na entrada do mês de maio), saíam de cena as lisérgicas e longas viagens sonoras para mísseis certeiros de três minutos de duração, com direito a letras curtas, repetindo versos ou algumas palavras e frases. A estrutura das novas composições também tornou-se algo bastante rudimentar: eram estrofes e refrões intercalados. Nada de pontes ou terceira parte – no máximo, ao vivo, havia um pequeno espaço para solos de guitarra ou percussões, mas sempre repetindo uma mesma sequência anterior de acordes. Quanto aos vocais, um pequeno truque de Visconti: Marc gravava-os sempre em dobro, com o produtor se esmerando para deixá-los distanciados por um pequeno delay de um milissegundo. Adicionados à instrumentação rock’n’roll, as vozes de Bolan traziam um eco de extrema força magnética, algo quase imperceptível.

Entretanto, foi só em 1971 que o T.Rex decolou rumo ao sucesso e à fama. Steve Currie e Bill Legend (respectivamente baixo e bateria) foram adicionados à formação. A estilista Chelita Secunda, esposa de Tony Secunda, manager do Bolan na época, foi peça primordial na transformação do vocalista em sex symbol. Veio dela a ideia de que Marc adotasse a androginia em seu visual, com o uso de cores fortes e muito brilho nas roupas, acessórios femininos como espalhafatosos boás e discretos slingbacks mais uma forte maquiagem com direito a lápis preto, blush, batom mais estrelas e lágrimas feitas com muita purpurina colada logo abaixo dos olhos. Foi com a banda cheia, o novo visual e a nova receita sonora que a banda emplacou naquele ano. A aparição desta maneira no popular programa Top Of The Pops, da BBC, logo no início do ano, cantando o novo single “Hot Love” transformou a banda em nova febre da garotada. As meninas, especialmente, formaram a maioria do fã clube. Pudera, também. A nova fórmula de Bolan incluía versos para lá de libidinosos, tal qual seus heróis pioneiros do rock, com versos de alto teor sexual, chegando a usar gírias corriqueiras dos jovens, Como no single seguinte, que seria o responsável por detonar o tal T.Rextasy.

Na verdade, a trajetória do T.Rex coincide com um período muito especial para o cotidiano da sexualidade na Grã-Bretanha. Para se ter uma ideia, somente em 1968 a homossexualidade foi descriminalizada por lá. Então, o período da contracultura foi uma movimentação primordial para a sociedade andar por novos caminhos e maneiras para viver e sobretudo se adaptar a isso. Sobretudo os adolescentes, que estão na fase dos hormônios todos em ebulição e um mundo inteiro de descobertas pela frente. O que leva ao principal caso midiático da cobertura da imprensa britânica em 1971: o julgamento dos editores da revista Oz, febre entre os teenagers, considerada extremamente obscena pelos setores mais conservadores por causa de alguns desenhos e fotografias utilizadas em colagens. O tribunal – o mais longo de toda a história da justiça de lá – levou cinco longas semanas até decidir pela condenação de seus editores, levados à prisão sob a alegação de “fornecer conteúdo sexual a menores de idade e perverter a moral pública”. Os cabeças da publicação cumpriram um tempo de pena na cadeia e o golpe foi duro, a ponto da revista ver sua popularidade cair até deixar de circular em 1973.

Ao lado da Oz, o T.Rex foi o grande responsável pela liberação do tesão adolescente no biênio 1971/1972. Os shows da banda eram um festival de hormônios à flor de pele. Meninas gritando histericamente como não se via desde os primeiros anos dos Beatles. No palco, um frontman que não apenas sensualizava com a guitarra como fizera Jimi Hendrix (inclusive chegando a tocá-la com um pandeiro), o que somava ruídos e microfonias à costumeira distorção do pedal. Marc Bolan incorporava um dândi afetadíssimo, era um puro teatro de Pantomima, rebolava sem parar na hora do acentuado batuque de tambores promovido por Finn, Currie e Legend e dava sem parar gritos estridentes e selvagens. Sabia, como ninguém, levar a plateia adolescente em sua mão do início ao fim dos shows – como se pode ver na íntegra dos dois concertos promovidos pelo quarteto naquele fatídico sábado 18 de março de 1972, devidamente documentados em filmes dirigidos por Ringo Starr.

“Get It On (Bang a Gong)” foi a canção responsável pelo estouro sem volta do T.Rextasy. Com versos que comparavam a libido de uma garota a uma possante máquina automotiva, o single era um boogie dançante que “pegava emprestado” um riff de Chuck Berry (do hit “Little Queenie”, porém com a devida desaceleração) e trazia um refrão acachapante, daquele de demolir qualquer paredão à frente com a força de um coro em uníssono cantando junto como é chegar a um orgasmo. Novo número um das paradas britânicas em julho de 1971, o compacto foi incluído no vindouro álbum Electric Warrior, lançado em setembro e logo içado ao mais alto posto das paradas de sua categoria. O long-play incluía ainda dois clássicos. “Jeepster” – que também trazia versos de teor altamente sexual e já fazia referência automobilística já em seu título –saiu em compacto em novembro, chegando ao número dois dos charts. “Cosmic Dancer”, por sua vez, era uma balada que falava sobre a obsessão que Marc tinha por dançar rock desde os mais tenros anos da infância. Não ganhou edição separada em sete polegadas mas nunca faltava no repertório dos shows – era sempre um dos dois ou três elementos reservados para o interlúdio de calmaria estrategicamente promovido no meio do set, quando os acompanhantes saíam do palco e Marc voltava a sentar-se ao chão para dedilhar um violão.

Sem tempo para deixar a poeira assentar, Bolan, Visconti e banda entravam em estúdio para gravar as faixas de um novo álbum do T.Rex. “Telegram Sam” e “Metal Guru” anteciparam o disco The Slider no formato de compactos. A primeira canção transformou-se em mais um hino glam cantado de cabo a rabo pela molecada. A segunda, uma balada com apurado arranjo de cordas escrito por Visconti, questionava a cegueira da religiosidade com citações discretas sobre rock’n’roll, drogas, mais automóveis (neste caso, a poluição) e o boom da industrialização exercido no período pós-guerra. Ambos deram à carreira meteórica do grupo outros números um.

The Slider chegou às lojas em julho de 1972 mas o furacão T.Rex continuava sem controle. Ringo, voltou a se aproveitar de sua carreira paralela como produtor e diretor de cinema e lançou um filme centrado em Marc Bolan e suas composições. Lançado nos cinemas em dezembro, Born To Boogie intercalava esquetes nonsense com números musicais (em alguns deles, o quarteto tocava no famoso estúdio dos Beatles junto com o baterista dos Fab Four e Elton John ao piano). Mais singles com músicas não lançadas em álbum vinham para saciar a sede do extenso fã-clube juvenil. Em setembro, foi a vez de outra balada, “Children Of The Revolution”, composta para entrar em Born To Boogie e que também fazia referência às quatro rodas na letra, ganhar versão definitiva em estúdio – em compacto que alcançou a segunda posição nos mais vendidos da ilha. “Solid Gold Easy Action” foi lançada em dezembro e repetiu a performance de vendagem do disquinho anterior. Para o primeiro semestre de 1973, foram guardadas “20th Century Boy” e “The Groover”, mais dois hits certeiros (números três e quatro da parada, respectivamente).

Entretanto, tudo o que é intenso e meteórico também acaba sendo fugaz. A fórmula bem-sucedida do grupo fez com que outros músicos passassem a adotar o visual cheio de glitter e glamour iniciado por Marc Bolan, mas em contrapartida propusessem outras sonoridades. Algo diferente, por isso mesmo, mais atrativo tanto para crítica quanto para o público. Nomes como Slade, Roxy Music, Sweet, Gary Glitter vieram para explorar o filão junto ao público mais jovem e dividir o espaço com o T.Rex. A principal “ameaça” ao império de Bolan partiu justamente de um “fogo amigo”. Foi justamente um colega próximo, a quem inclusive Marc apresentou o produtor Tony Visconti, quem veio para destroná-lo. Em processo de reinvenção musical e conceitual desde 1971, David Bowie mergulhou na persona do alienígena Ziggy Stardust para chacoalhar de vez as estruturas do showbiz britânico – e logo em seguida mundial – e também se firmar como popstar camaleônico, incensado pela mídia e carregador de um séquito sem fim de fãs.

Só que não foram apenas a forte concorrência e o tiro certeiro de Bowie como Ziggy Stardust que foram determinantes para a queda do T.Rex. A exploração foi tanta e tão rápida que a fonte secou. Depois de meados de 1973, Bolan nunca mais conseguiu emplacar um compacto sequer entre os dez mais vendidos, quanto mais voltar a fazer álbuns tão poderosos como Electric Warrior e The Slider. Contribuiu também para isso uma boa dose de autoindulgência do músico, que, isolado dentro de seu próprio castelo de excessos etílicos e químicos, tornou inviável não só a química com os demais integrantes (com exceção da esposa, a cantora Gloria Jones, incorporada aos teclados a partir daquele ano e que já havia feito relativo sucesso solo com a canção “Tainted Love’, posteriormente regravada e tornada hit por Marc Almond e seu Soft Cell) como também a comunicação direta com executivos de gravadora e promotores de concertos e turnês nos Estados Unidos, fato que impediu o desenvolvimento da carreira internacional da banda. Pouco a pouco, nesta ordem, Legend, Finn e Currie não tardariam a abandonar o barco, sendo imediatamente substituídos por outros músicos.

O ocaso do T.Rex, contudo, parecia que não iria durar muito. Em 1976, Marc Bolan – que nunca escondeu ser apaixonado por programas musicais na TV – foi convidado a estrelar um deles, chamado Supersonic, dando novas interpretações para algumas de suas músicas mais conhecidas. Logo depois ganhou o seu próprio show, produzido em Manchester para a ITV pela mesma Granada Television que anos depois iria popularizar o nome de Tony Wilson) no qual poderia ser o apresentador e escalar qualquer convidado para tocar ao vivo por lá. Entre os convocados dos seis programas estavam bandas iniciantes como Generation X e Jam – o que mostra uma sintonia fina de Bolan com o underground e o irromper do movimento punk. Outra banda do gênero, o Damned, inclusive, fora convidada pelo guitarrista para ser a atração de abertura de parte de sua nova turnê britânica. Quem também participou do programa derradeiro foi o amigo David Bowie. O sucesso foi tanto que uma segunda temporada já estava nos planos para o ano seguinte.

Contudo, quando as portas pareciam propensas a se abrirem de novo graças à forte conexão com eis que veio o golpe final do destino e sem direito a final feliz. Depois de voltarem de uma noitada etílica em Mayfair, em Londres, Bolan e Jones sofreram um grave acidente de carro na madrugada de 16 de setembro de 1977, exatas duas semanas antes do trigésimo aniversário dele. Ela perdeu o controle da direção e o carro onde estavam chocou-se violentamente contra uma árvore. Gloria ficou bastante machucada e Marc bateu a cabeça contra o painel frontal, morrendo instantaneamente. Ele estava no banco do passageiro porque sempre se negou a aprender a dirigir pelo fato de não querer morrer jovem e da mesma maneira que alguns dos seus grandes ídolos. Justo ele, que fizera muito sucesso com letras sobre diversão, sexo e carros (tal qual seus heróis lá do início do rock’n’roll), perdia a vida em um acidente automobilístico. Como James Dean e Eddie Cochran.

Movies

A Última Noite

Produção britânica que se passa em festa natalina abusa do humor corrosivo e ainda mistura elementos de drama, suspense e horror

Texto por Abonico Smith

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Filmes de Natal jorram aos borbotões em Hollywood para preencher todas as lacunas de cinema, streaming e VOD nas semanas que antecedem a festa de Papai Noel. Quase sempre com mensagens positivas, alguns tendendo para o lado da comédia e nunca descartando o indefectível final feliz, aliás.

Só que agora chega ao Brasil um filme de Natal diferente. Para começar, ele é britânico e carrega consigo todo aquele humor acidamente satírico costumaz da dramaturgia da ilha da Rainha Elizabeth. Some-se a isso ao fato de apostar em um blend de gêneros (drama, comédia, suspense, horror, musical, ficção científica) cada vez mais característico em obras extremamente autorais surgidas no cinema dos últimos anos. E, sim, é uma produção bastante esquisita pelo menos para quem chega esperando linearidade em histórias natalinas.

Estreia na direção e roteiro em longas-metragens de Camille Griffin, de ascendência franco-inglesa e veterana nos bastidores de produções cinematográficas (já atuou em várias obras como segunda assistente de câmera ou, mais popularmente, operando as claquetes que dão início a todas as cenas rodadas), A Última Noite (Silent Night, Reino Unido, 2021 – Paris Filmes) parte da premissa de que a tão cultuada e festejada noite de Natal, na verdade, será a última de toda a existência de seres vivos que habitam o nosso planeta. Tudo porque uma catástrofe ambiental liberou uma nuvem de gás tóxico que, por toda e qualquer área externa por onde passa, irá matar quem o respira em questão de segundos. Pensando nisso, um casal (Keira Knightley e Matthew Goode) e seus três rebentos (entre eles Roman Griffin Davis, revelado em Jojo Rabbit e um dos três filhos da diretora/roteirista) reúne em sua casa de campo alguns familiares e amigos dos velhos tempos de escola. Todos não estão ali para celebrar o futuro, mas sim fazer uma espécie de acerto de contas com o passado, inclusive colocando em pratos limpos todas as suas mágoas, diferenças e frustações uns com os outros.

Isto impulsiona o filme para aquela que parece ser sua faceta mais proeminente, a comédia de humor corrosivo, mórbido e politicamente incorreto, o que torna a primeira metade do filme uma experiência angustiante para quem a assiste. As farpas trocadas fazem espectadores se sentiram na companhia de um elefante em uma sala de cristais. A todo instante – inclusive com iniciativa das próprias crianças, o que não deixa de dar uma verossimilhança à atitude delas, já que uma das características da infância é a conjunção entre espontaneidade, sinceridade e autenticidade na hora de abrir a boca – os personagens são atropelados por rolos compressores verborrágicos. Mas nada de mal estar ali entre eles. O negócio é se recompor rapidamente e devolver na mesma moeda, já que não haverá outra oportunidade para tal. Vale o registro de que todos ali pertencem a famílias de classe média alta. Portanto, são abastados economicamente, tiveram acesso a uma boa educação e bons trabalhos e compõem uma certa elite tradicionalista, conservadora e que manda no dia a dia da sociedade britânica. Isto faz uma boa diferença em determinas ocasiões nos comentários disparados. 

Com o andar dos ponteiros do relógio e a proximidade do ponto final para a humanidade, o drama vai ganhando maior contorno, às vezes sendo intercalado por interlúdios de músicas pop de sucesso nos anos 1980 e 1990 (quando todos aproveitam para cantar e dançar freneticamente na sala) e ferinas críticas sociopolíticas (o governo britânico entregou eficazes pílulas mortais para que toda a população abreviasse seu fim sem passar por muito sofrimento físico, porém teria negado as mesmas para moradores de rua e imigrantes em situação irregular). Como os adultos presentes à festa fazem um pacto de suicídio de tomar os comprimidos e dá-los a seus filhos pequenos, muito da conversa e das atitudes ali muda de figura: passa do sopapo do Batman no Robin naquele famoso meme a questionamentos sobre o futuro da humanidade, de uma criança e inclusive de um feto que ainda se desenvolve na barriga da mãe. Como já era de se esperar, tem quem hesite em engolir o sinal prontamente, quem se recuse a fazer isso e quem o faça prontamente.

A Última Noite (atente para o título em português que, de uma certa forma, já antecipa o mote principal da história; se o nome original Silent Night também fosse traduzido para o português tal qual o nome da famosa canção/oração natalina e virasse Noite Feliz não só seria melhor como ainda daria um pouco mais daquele sarcasmo que carrega os diálogos escritos por Camille) não chega a ser tão envolvente o tempo todo e perde-se um pouco quando flutua entre os gêneros. De qualquer forma, a maravilhosa experiência de levar um elefante à sala de cristais em um filme natalino já faz com que ele mereça ser visto. Pode ainda ser em qualquer época, nem precisa ser nos últimos dias de dezembro. Afinal, aqui, o clima natalino é o que menos importa.

Movies

Espiral: O Legado de Jogos Mortais

Sequência com Chirs Rock encabeçando o elenco falha em reviver toda a tensão da atmosfera da cultuada saga de James Wan

Texto por Ana Clara Braga

Foto: Paris Filmes/Divulgação

Reza a lenda que um dia Chris Rock adentrou o escritório de executivos da Lionsgate para apresentar o pitching de uma ambiciosa e gráfica continuação para a saga Jogos Mortais que deixou os engravatados sem escolha ao não ser dizer sim. Menos interessante que o boato, a realidade é que o comediante comentou a respeito da ideia de um novo capítulo para a história para um executivo em um casamento no Rio de Janeiro. 

A franquia Jogos Mortais ficou conhecida pelo body horror, as armadilhas engenhosas e os plot twists de tirar o fôlego. O primeiro e melhor filme da saga de James Wan apresentou o conceito dos jogos perturbadores de Jigsaw para o mundo em 2004. Mais de uma década depois, Espiral: O Legado de Jogos Mortais (Spiral: From The Book Of Saw, EUA/Canadá, 2021 – Paris Filmes) falha em reviver a atmosfera tensa e sangrenta dos filmes originais. 

O novo capítulo dos jogos mortais muda de perspectiva e coloca o espectador o tempo todo acompanhando as investigações dos casos e das pistas deixadas pelo novo assassino Jigsaw. Enquanto nos longas anteriores, o foco maior eram os jogos, as engenhocas e a vida dos personagens que estão aprisionados. O filme inaugural do universo Jogos Mortais fez tanto sucesso pois soube balancear as cenas de investigação com o assustador banheiro em que as vítimas do Jigsaw estavam presas. 

O filme bebe da fonte neo-noir de produções como Seven, de David Fincher. Aliás, toda a atmosfera parece de um filme policial dos anos 1990 e é por isso que foge tanto ao tom da série original. O personagem de Chris Rock, Zeke Banks, é um policial perturbado pelo passado que passa a investigar os crimes que se assemelham aos assassinatos de John Kramer.  O detetive mal humorado deixa claro desde as primeiras cenas que trabalha sozinho, por isso o óbvio acontece e ele ganha um parceiro, o novato William Schenk (Max Minghella). 

Samuel L. Jackson também está no elenco, mas tem seu talento completamente desperdiçado. Ele interpreta um ex-policial e também pai de Zeke. Chris Rock é comediante e com Spiral queria mostrar uma nova faceta artística, mais séria. Não convenceu. As pequenas adições de humor nos diálogos também não funcionaram. Era uma piada? Ele estava apenas sendo um idiota? Fica a dúvida. Rock já se provou um ótimo roteirista de comédia, mas como ator em um papel sério deixou a desejar. O único tom da atuação é cansativo e escolher a rota do detetive cínico, sarcástico e sem espírito de equipe não é inovador. 

Spiral tem cortes de câmera rápidos, closes no rosto dos personagens e um jogo de iluminação irritante que faz todo mundo parecer suado. O primor técnico da franquia Jogos Mortais nunca esteve na filmagem ou na edição. Os efeitos práticos e especiais davam vida ao filme deixando os objetos usados nas armadilhas extremamente reais. 

Quando finalmente o momento da grande revelação chega, as expectativas não são correspondidas. O grande plot twist já consagrado nos filmes anteriores é fraco e muito previsível. Os flashbacks de explicação tentam melhorar a situação, mas a anestesia da decepção é forte. 

Trazer uma saga de seis filmes de volta à vida obviamente não é fácil, mas retirar ou enfraquecer todos os principais elementos que a caracterizam é algo absurdo. Espiral é pensado para ser uma sequência direta do filme 6, mas não parece se passar nem no mesmo século. A repaginação completa do universo seria perdoada se fosse uma refilmagem ou um reboot. Mas não, é filha direta das produções de James Wan. Fãs dos filmes originais ficarão frustrados. Curiosos não verão graça nenhuma. Esta aqui é uma sequência de decisões erradas e não faz jus ao seu boato de origem.