Edição 2019 do Popload Festival coroa o reinado da musa punk com “abertura” de Jack White, retorno triunfal e plateia virando pista de dança
Texto por Fábio Soares
Fotos: Fabricio Vianna/Popload Festival
O décimo quinto dia de Novembro de cada ano definitivamente entrou no calendário de shows do paulistano. Repetindo a data pela terceira vez consecutiva, o Popload Festival trouxe em 2019 a diversidade ao Memorial da América Latina, local este que definitivamente deveria ser mais utilizado para a realização de grandes eventos devido à sua excelente localização e acesso. Desde o anúncio do line up, em março, a venda de ingressos custou a decolar mesmo com um nome de peso como atração principal. Inúmeras promoções foram divulgadas, sobretudo nos trinta dias que antecederam o festival e, apesar dos percalços, a organização disse que todos os 15 mil ingressos disponibilizados foram vendidos.
CSS
O Mondo Bacana chegou ao local por volta de 16h, ainda a tempo de presenciar um tão aguardado retorno. Após uma conturbada separação, com intensa troca de acusações com seu ex-integrante (e decano) Adriano Cintra, o CSS foi escalado devido à enésima desistência do grupo norte-americano Beirut. Por ironia do destino, a escalação do grupo de última hora caiu como uma luva no line up. O Cansei de Ser Sexy ainda possui uma legião de fãs desde quando tinha o mundo alternativo a seus pés lá no triênio 2006-2008.
Sob um clima de grande comoção, Lovefoxxx, Ana Resende, Luiza Sá e Carolina Parra subiram ao palco. A vocalista logo soltou um “Feliz 2004!” aos primeiros acordes de “Art Bitch”. A partir daí veio um set list para nenhum fã mais devoto reclamar: “Music Is My Hot Hot Sex”, “Bezzi”, “Meeting Paris Hilton”, “Alala” foram entoados em uníssono pela turma do gargarejo. Lovefoxxx ainda reina absoluta no imaginário de seus fãs, muitos deles ainda adolescentes quando o grupo explodiu há quase uma década e meia. Agora entre o trintão e o quarentão, o grupo finca de vez sua bandeira na causa LGBT. Visivelmente emocionada, Luísa Matsushita relembrou o recente período de exílio que incluiu uma temporada como moradora do estado do Amazonas, onde apreendeu (e praticou) um estilo de vida autossustentável, hoje continuado em Santa Catarina. “Quando era mais jovem, imaginei que tivesse de vir para uma cidade grande para encontrar minha identidade. Hoje, percebo que isso não é uma regra. A gente pode encontrar nossa identidade em qualquer lugar. Aqui, na praia ou no meio do mato, como eu fiz”, disse, antes dos primeiros acordes de “Superafim” encerrarem a apresentação. Para a alegria dos fãs e o desespero dos detratores, o CSS voltou para reescrever sua história. Quanto ao resto, o tempo dirá.
Set List: “Art Bitch”, “Music Is My Hot Hot Sex”, “Hits Me Like a Rock”, “Move”, “Bezzi”, “Meeting Paris Hilton”, “Alala”, “Dynamite”, “Fuck Everything”, “Let’s Reggae All Night”, “Let’s Make Love And Listen To Death From Above”, “City Grrrl” e “Superafim”.
HOT CHIP
Ainda sob a atmosfera de êxtase após o retorno triunfal do CSS, os veteranos britânicos subiram ao palco mais para confundir do que para explicar. Não seria inexato rotular o grupo como “cria do Devo” e. apesar de soar datado, o som do Hot Chip agrada muito mais aos quarentões do que à garotada. “One Life Stand” abriu os trabalhos com um tímido Alexis Taylor agindo como um Rivers Cuomo clubber. Postura esta que destoava do resto do time, que demonstrava uma alegria pujante por estar no palco. Talvez por isso a apresentação demorou um pouco a engrenar. Somente em “Spell”, quinta canção do set list, o público rendeu-se às batidas e linha de baixo pegajosas que transformaram o Memorial numa grande pista de dança.
Com o jogo ganho, “Over And Over”, “Melody Of Love” (do excelente e mais recente álbum A Bath Full of Ecstasy) e “Ready For The Floor” desceram como água para o que viria na sequência: uma inesperada versão de “Sabotage”, dos Beastie Boys, que agradou em cheio a plateia. A seguir, o único equívoco da apresentação: a chatíssima “I Feel Better”, como encerramento, não pareceu uma escolha acertada. A excelente “Brothers”, que inclusive é do mesmo álbum (One Life Stand, de 2010), seria uma ótima pedida para o até logo. Apesar disso, o Hot Chip não comprometeu. E não seria errado afirmar que a banda arrebatou novos fãs após esta mais recente passagem pelo Brasil .
Set List: “One Life Stand”, “Flutes”, “Hungry Child/Everywhere”, “And I Was a Boy From School”, “Spell”, “Over And Over”, “Melody Of Love”. “Ready For The Floor”, “Sabotage” e “I Feel Better”.
RACONTEURS
A alcunha de “multi-homem” dada a Jack White não é sem motivo. Um dos poucos casos de músicos que conseguiram desvincular a exclusividade de sua imagem ao grupo ou projeto que o alçaram ao estrelato, o produtor/compositor/cantor/guitarrista/pianista (mais outras funções que não cabem aqui) trouxe a São Paulo um de seus grupos sob grande expectativa. Com o fiel escudeiro Brendan Benson incluído neste projeto, ele escancara a influência do country blues americano nas canções do quarteto. “Bored And Razed” abriu os trabalhos para delírio dos mais devotos que, com quase certeza, ignoraram o restante das atrações e foram ao festival somente para vê-los. Ao vivo, os Raconteurs mais parecem um rolo compressor e a performance do grupo impressiona.
Como músico, White é um “Deus da Raça”: absoluto nas guitarras, ao piano e teclados, no violão, sabe como poucos usar o virtuosismo a seu favor. Já Benson tem a noção de que seu papel na banda é de escada para o ídolo indie e, mesmo assim, é um privilegiado espectador de luxo em cima do palco. Pontos altos deste show, “Level”, “Don’t Brother Me”, “Only Child” e “Broken Boy Soldier” foram formidáveis pílulas de uma apresentação impecável. O eterno hit “Steady As She Goes” foi executado em versão ampliada para um novo delírio da audiência. Ao final, duas certezas. Jack, o “Rei”, ainda terá súditos por muito tempo. Já pra quem nunca teve estômago para seu virtuosismo, teve nessa sexta-feira a chance de execrá-lo de vez.
Set List: “Bored And Razed”, “Level”, “Old Enough”, “You Don’t Understand Me”, “Don’t Bother Me”, “Only Child”, “Broken Boy Soldier”, “Now That You’re Gone”, “Sunday Driver”, “Help Me Stranger”, “Somedays (I Don’t Feel Like Trying)” e “Steady As She Goes”.
PATTI SMITH
Por mais que o Popload Festival tenha aura de alternativo, a escalação de cultuados veteranos se faz necessária como um chamariz de um certo tipo de público. Foi assim com PJ Harvey em 2017 e com o Blondie no ano passado. Para 2019, a escalação de Patti Smith mais pareceu um alinhamento de planetas. Cada vez mais engajada no universo literário, a musa do punk aproveitou sua passagem por São Paulo para lançar dois livros: o ficcional Devoção e o autobiográfico O Ano do Macaco. Com relação a ambos, uma concorridíssima tarde de lançamento lotou o teatro do Sesc Pompeia no dia anterior.
Mas vamos ao show que encerrou a noite do dia 15. Uma enorme nuvem de expectativa parava sobre a primeira vez de Patti Smith em São Paulo. Na plateia, cinquentões destoavam dos mais jovens e “moderninhos” (grande parte deles, aliás, deixou o local após o término dos Racounteurs). Pontualmente às 20h45 Patti surgiu ao palco ladeada por seus fiéis escudeiros Lenny Kaye (guitarras) e Jay Dee Daugherty (bateria). Ambos a acompanham há mais de quatro décadas. Com um som demasiadamente baixo (a equipe do Popload posteriormente explicou em nota que a responsabilidade pelo volume foi do técnico de mesa escolhido pela equipe da artista), os primeiros acordes de “People Have The Power” foram ouvidos dando o tom de engajamento do que seria a apresentação. Invariavelmente, a cantora explicava em breves introduções a história da canção que viria a seguir. Foi assim com “Beds Are Burning”, cover do Midnight Oil bem adequada ao momento de queimadas na Amazônia, e “Beneath the Southern Cross”. Já “Dancing Barefoot” (a predileta deste que vos escreve!) teve sua execução mais cadenciada, o que não prejudicou em nada sua pujança. Como o apelo emocional é parte integrante de seus shows, pequenos erros passam quase que despercebidos como sua confusão com a letra de “After The Gold Rush”, eterno clássico de Neil Young que levou às lágrimas fatia significativa dos presentes. Como uma sacerdotisa, Patti comandava seus seguidores apenas pela sua verborragia encharcada de ativismo e poesia. Acima de tudo, era uma apresentação para se degustar, com ares de recital em grande parte dela.
Na segunda metade, pausa para um rápido descanso. Patti deixou o palco para que Lenny Kaye e o baixista Tony Shanahan emendassem a dobradinha de covers “I’m Free” (Stones) e “Walk On The Wild Side” (Lou Reed) e retornou para um matador trio de canções reservado para o fim: a eterna “Because The Night”, a espetacular “Land” (seminal hino do clássico álbum Horses, de nove minutos de duração) e o apoteótico final com “Gloria”. A pérola de Van Morrisson que transformou-se numa das mais belas apropriações indébitas da história do rock levou o público presente ao delírio quando Patti literalmente arrancou “na unha” as cordas de sua Stratocaster.
No final, um clima de comoção tomou conta do Memorial. Todos ali sabiam que um show de Patti Smith nunca seria uma apresentação qualquer. Era a história do rock passando diante de nossos olhos como um clássico cinematográfico. Porque ela nos dá a certeza de que não há idade para se engajar e encher o mundo de poesia. Como também não há idade para encantar e ser encantado.
Set List: “People Have The Power”, “Ghost Dance”, “Dancing Barefoot”, “Beds Are Burning”, “Beneath The Southern Cross”, “Free Money”, “I’m Free/Walk On The Wild Side”, “After The Gold Rush”, “Pissing In a River”, “Because The Night”, “Land” e “Gloria: In Excelsis Dio”.