Books, Comics, Series, TV

The Sandman

Cultuada graphic novel de Neil Gaiman é transformada em série para o streaming pelas mãos de seu próprio criador

Texto por Taís Zago

Foto: Netflix/Divulgação

Considerada “inadaptável’’, The Sandman (Reino Unido, 2022) , o carro-chefe das produções de Neil Gaiman para a DC Comics/Vertigo, ficou guardada na gaveta e nos desejos de fãs, roteiristas e diretores de cinema e TV por quase três décadas. Ninguém parecia querer assumir o risco de desfigurar uma das grandes obras-primas do universo sombrio das graphic novels. Então, eis que o próprio Gaiman resolveu arregaçar as mangas e tomar para si a tarefa árdua de transformar o mundo fantástico e mitológico de seu Morpheus em uma série para o canal de streaming Netflix. 

A obra de base em questão é extensa: são 13 volumes, sendo um para cada arco da história, onde foram agrupadas as 75 edições de Sandman. O mundo do senhor dos sonhos de Gaiman é multifacetado e multidimensional. Nele não faltam representações oníricas, filosóficas, religiosas, reflexivas e referências culturais da época em que foram publicados os quadrinhos originais – entre janeiro de 1989 e março de 1996. Posteriormente se juntaram a essa lista uma edição especial e alguns contos também publicados pelo Vertigo, o selo “adulto” da DC. O estrondoso sucesso de The Sandman, que elevou Gaiman ao olimpo dos autores do gênero, também fez com que até hoje ainda sejam (re)publicadas compilações, algumas bastante luxuosas, da coleção. A base de admiradores deo artista só aumentou com o passar dos anos. 

A primeira temporada teve a difícil tarefa de sintetizar em apenas dez episódios os dois primeiros volumes compilados da saga, os quais reúnem as 16 primeiras edições da HQ, chamados Prelúdios e Noturnos Casa de Bonecas. Talvez aqui já comece a dificuldade para os não iniciados na obra do autor, pois engloba uma grande diversidade de temas, personagens, épocas e tramas relacionadas. Porém, bem antes de se aventurar nessa sua nova empreitada televisiva, Gaiman viu algumas de suas publicações virarem filmes, uns menos e outros mais bem sucedidos, como foi o caso da animação Coraline, de 2009, baseada no livro de mesmo nome. Mas foi somente há cinco anos, com American Gods, que Neil se rendeu às possibilidades de produção, longa duração e liberdade de criação que os grandões do streaming podem oferecer. Satisfeito com o resultado e o sucesso de público, ele voltou a emplacar mais um hit com Good Omens, de 2019. Ambas as séries estão disponíveis no canal Amazon Prime.

Para o papel de Morpheus em The Sandman foi escalado o ator britânico Tom Sturridge, conhecido pela série Sweetbitter (2019) e filmes como Velvet Buzzsaw (2019). Tom recebeu críticas pelo seu trabalho, inclusive diretamente de Gaiman que pediu para que ele fosse “menos Batman” na sua entrega. Não é uma atuação perfeita, admito, mas é o mais próximo que já vi do personagem dos quadrinhos – lembrando que já houve outra tentativa em representar o papel, como no curta Sandman: 24 Hour Diner (2017), onde o mestre dos sonhos recebe um tratamento caricato e pouco convincente, em parte pela péssima qualidade do resultado na procura por mimetizar a imagem dos quadrinhos. Isso não ocorre com Tom. Naturalmente magro e pálido, sua figura esguia foi reforçada com a ajuda de filtros, seus cabelos são desalinhados sem parecerem uma peruca exagerada, seus olhos não são representados como duas bolinhas de gude de turmalina negra. O Sandman de Gaiman foi inspirado no músico Robert Smith, vocalista do Cure:  tem um estilo claramente gótico e um temperamento depressivo, desconectado e entediado, típico de rockstars. Tom representa isso e vai além. Ainda consegue incluir um pouco mais de dor nos gestos, de dúvida nas atitudes e de humildade diante do que não compreende. O Sandman dos quadrinhos é torturado por sua quase total incompreensão do significado de humanidade. Um ser superior que constrói e destrói universos, mas que começa a perceber qual a real dinâmica de poder em sua existência. 

Assim como seus irmãos, os “Perpétuos” (The Endless, no original em inglês), ele compartilha da letra D como inicial: ele é Dream, o Sonho. Os outros se chamam Death, Despair, Desire, Dellirium, Destiny e Destruction. Nessa primeira temporada, conhecemos apenas Death, muito bem incorporada pela atriz Kirby Howell-Baptiste (de Killing Eve), e os gêmeos Despair e Desire, esse último brilhantemente interpretado por Mason Alexander Park (de Cowboy Bebop). Outras muitas criaturas míticas e personagens surgem representadas pelo estrelato hollywoodiano, como Gwendoline Christie (de Game Of Thrones) no papel de Lucifer; Boyd Holbrook (In The Shadow Of The Moon) como Corinthian; o corvo Matthew, feito pelo comediante Patton Oswalt; Stephen Fry, sensacional como Gilbert; Mark Hamill (o eterno Luke Skywalker de Star Wars) como Mervyn Pumpkinhead; ou David Thewlis (Zack Snyder: Justice League) como John Dee. Menção honrosa aqui vai para o multitalentoso John Cameron Mitchell (Hedwig and the Angry Inch), no papel do dono de pensão/drag queen Hal Carter, que nos presenteia com um show de performance nos seus números musicais.

 Neil Gaiman acompanhou a produção com olhos de águia. Envolveu-se em todas as etapas, quer fosse como criador, roteirista ou produtor. E isso é bastante perceptível na fidelidade das representações e dos diálogos. Por vários momentos me vi gritando de contentamento, falando com a TV ou aplaudindo (de pé!). Episódios como 24/7, o quinto da temporada, foram adaptados quase que exatamente como eu tinha em mente. Aos poucos o medo de que uma paixão fosse destruída se dissipa conforme avançamos nos capítulos. Gaiman protegeu a sua visão até onde teve poder para tanto, e conseguiu isso sem abdicar de um aumento da representatividade no elenco como a contratação do artista não-binárie Mason Alexander Park para o papel de Desire e a inclusão de atores pretos e pardos como Sandra James-Young no papel de Unity Kinkaid e Vanesu Samunyai como Rose Walker. 

Gaiman também alterou para o feminino personagens que eram, até então, masculinos – Vivienne Acheampong (The Witches) assumiu como Lucienne e Jenna Coleman (The Serpent) como Johanna Constantine. Na obra original, o braço-direito de Morpheus era o bibliotecário Lucien, uma espécie de conselheiro e voz da consciência de seu chefe. Na série, Vivienne incorpora perfeitamente o papel e ainda dá a ele um pouco de sabedoria maternal (uma acertada decisão!). Infelizmente, o mesmo não ocorre com o papel dado a Jenna. Por questões legais, o personagem John Constantine não foi autorizado a fazer parte da série. Como peça fundamental da trama, não poderia ser omitido. A solução encontrada por Gaiman foi, portanto, criar um novo personagem, desta vez feminino. Mas o resultado da decisão ficou muito aquém das expectativas. John Constantine não é apenas um coadjuvante em The Sandman, ele tem seu próprio universo nos quadrinhos Hellblazer (DC Comics/Vertigo), criado por outro gigante da arte sequencial, Alan Moore. Jenna Coleman não conseguiu arranhar nem a superfície de Constantine com sua interpretação, que pouco se difere do trabalho que fez em Victoria, sobre a rainha inglesa. John é uma alma perdida, ora conman ora altruísta. Sua marca registrada é o constante sarcasmo por meio de um humor cáustico e tremendamente autodepreciativo. Constantine está além dos códigos morais ou aspectos pequeno-burgueses da vida em sociedade. Fuma vários maços de cigarro por dia, usa drogas e é alcoólatra. É um punk bruxo que usa sempre o mesmo trenchcoat encardido, dorme onde consegue um pouso e que viaja entre planos e entre lençóis. É um andarilho dos mundos sobrenaturais. Um niilista nato. A Johanna de Coleman mais parece uma colegial ao estilo Sabrina, é uma punk de butique. 

O tratamento visual dado é quase sempre bastante convincente, levando em conta a atualização dos fatos e tecnologias para o ano 2022 e o imenso budget do projeto. Aqui deixo registrada uma pequena crítica ao abuso de CGI onde outras soluções mais “analógicas” talvez surtissem melhor resultado. Não perdendo de vista, claro, a imensa dificuldade técnica de transpor o mundo fantástico dos sonhos, muitas vezes lisérgico e abstrato, que define os quadrinhos. Apesar disso, o resultado é satisfatório e não deve decepcionar os fãs. Outro ponto de crítica seria a eventual heterogeneidade da temporada, mas nesse ponto é importante lembrar que ela engloba dois arcos distintos da narrativa e em cada arco ainda existem jornadas diferentes, que, à primeira vista, parecem não estar conectadas. A ideia, a princípio, é que venham outras temporadas da série para que possamos ligar alguns pontos no grande quebra-cabeça que aqui foi criado.

The Sandman é uma série feita com amor e sob medida para os fãs da obra de Neil Gaiman. Seria impossível omitir esse fato, o que não exclui de forma alguma o alcance para um público muito maior. O único pré-requisito exigido aqui é permitir-se sonhar.